Resenhas sortidas.

Originalmente publicadas em minha rede social.

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Odes, John Keats, trad. Wagner Schadeck, ed. Anticítera
Atta Troll e outras canções, Heine, trad. Vários, ed. Anticítera
Poesias, Goethe, trad. Vários, ed. Anticítera

Hoje é o tal do #indiebookday. A ideia é você se levantar do berço esplêndido e ir num sebo comprar livros de pequenas editoras. Depois, fazer aquele comentário esperto numa rede social. Uma ideia importante, claro, visto que no geral as pessoas adoram fazer um ensaio fotográfico daqueles livros pomposos e cheios de glitter (ou fotos de um Vade Mecum que acabaram de grifar, seguidas de hashtags e frases prontas de concurseiro atribuídas a Henry Ford), se esquecendo do trabalho via de regra surpreendente que pequenas editoras na calada da noite fazem.

A parte da compra do livro vou ficar devendo, de modo que vou falar rapidinho desses três livros aqui, da Anticítera, que chegaram pra mim essa semana.

O primeiro tem só seis poemas. Se você realmente o encontrasse num sebo, daria pra ler ali mesmo. (Mas não faça isso; hoje é o #indiebookday, afinal.) Mas aí é que tá: seis poemas estupendos, coisa de altíssimo nível. Se já é inacreditável que alguém algum dia tenha escrito a "Ode a um Rouxinol", ainda mais inacreditável é saber que esse mesmo alguém escreveu o "Para o Outono" ou o "Ode sobre uma Urna Grega". É um lançamento louvável. Quando fiquei sabendo que esse livro ia sair, eu literalmente deixei um dinheirinho guardado no fundo falso do guarda-roupa. Até então o ciclo completo só havia sido traduzido pelo Péricles Eugênio da Silva Ramos. O resto se acha picotado entre um e outro tradutor. Todavia, acondicionar tudo a uma brochura de exatas 100 páginas... Isso até hoje não. Compensa cada um dos trinta reais. É do tipo de livro que vai te acompanhar por um bom tempo, desses que dá pra colocar na mochila e ler até mesmo por osmose. Conta com traduções do camarada Wagner Schadeck, um tradutor erudito.

Já os outros dois, também organizados pelo Wagner, são coletâneas de poemas de Heine e de Goethe, só que saídas da pena de um rol ilustríssimo de tradutores, todos, ao que me consta, em domínio público. Assim, no âmbito de Heine por exemplo, o leitor vai encontrar gente da estirpe de Gonçalves Dias, Machado de Assis, Alphonsus de Guimaraens ou Manuel Bandeira. É bom pra mais de metro. Como não conheço patavinas de alemão, fico sem poder dar um pitaco mais demorado. A qualidade dos textos em si é variável, indo de poemas que ficaram muito bonitos na língua de chegada (isto é, a nossa) àqueles que parecem ser um tipo muito ruim de mensagem de auto ajuda.

Antologias desiguais, naturalmente, visto que o trabalho da Anticítera é o de lançar sondas nas jazidas e redescobrir traduções relevantes. Sei que o conceito de relevância é espinhoso, mas eu buscaria defender essa ideia pedindo que lembremos que ainda hoje a faceta lírica da poesia do Goethe é pouco conhecida e que, por outro lado, as traduções das canções do Heine neste simpático volume da Anticítera (claro que as atenção são voltadas às aventuras do urso Atta Troll, mas as canções não deixam a desejar) ganham e muito se colocadas ao lado das versões que o André Vallias fez alguns anos atrás do mesmo autor. Quer dizer: enquanto este último é o Heine depois de terem mergulhado a cabeça do Romantismo nas águas do Letes e depois de a terem reerguido, o Heine que a Anticítera nos apresenta é um Heine do século XIX e seus lírios formosos, mimosos seios e vozes maviosas.

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Estrofe 5 de "Ode para um Rouxinol"
Keats, trad. Wagner Schadeck

Não posso ver as flores a meus pés,
Nem a ramagem que o olor remoça.
E embalsamado na penumbra, o viés
Doa-me o sazonável mês que adoça
A relva, a moite, o pomarejo gaio,
Roseira-brava, branco pinheirinho,
A fugaz violeta entre a folhagem,
O rebento de maio,
A rosa almíscar a orvalhar de vinho
E o murmúrio de moscas na estiagem.

*

Poema 12 de "Nova Primavera"
Heine, trad. Alphonsus de Guimaraens

Ah!, Se eu pudesse chorar o pranto
De amor, lágrimas tristes que são de ouro...
Como temo o rebelde choro
Que chamo e creio desejar tanto!

Júbilo amargo, miséria calma,
Sofrimento que já me encheu de dores,
De novo acharam os amores
A antiga estrada para a minha alma.

*

Mar Calmo
Goethe, trad. Francisca Júlia

O mar não canta nem ondeia.
O nauta, imerso noutro mar de mágoas,
Os olhos tristes e úmidos passeia
Pela tranquila quietação das águas.

A onda, que dorme quieta, não espuma;
O agro, que sonha plácido, não canta;
E em todo o vasto mar, em parte alguma,
A mais pequena vaga se levanta.







Other men's daughters, Richard Stern

Uma dica de livro: Other Men's Daughters, do Richard Stern. O melhor elogio que você vai encontrar é aquele que o Philip Roth fez quando disse que o livro é como se Tchekhov tivesse escrito o Lolita. Não sei dizer se compro a ideia da frase, mas ela pelo menos cumpre a função de despertar nosso interesse em relação à obra. Conta a história de um professor universitário que tem um caso com uma jovem. Não chega a ser um livro pretensioso ou arrebatador (arrebatador no sentido que hoje se dá a qualquer narrativa envolvendo crianças manuseando tralhas dos anos 80), mas é no mínimo escrito por alguém que tinha consciência e domínio da técnica narrativa: "perfect in all its parts and proportions, in its distribution of sympathy, in its graceful narrative jumps as in its artful bursts of shifting points of view", continua o nosso amigo Philip. Há uma tradução assinada pela Angela Melim e publicada pela Globo na década de 70. Não pude conferir, mas dá pra achar em qualquer sebo.

Um trecho:

He walked toward nothing, so walked slowly, vacating himself to heat, looks in windows, the customers in Zum-zum's, the pleasant half-images of breakfast ― bacon rolls, the small, fruity tear-segments of the orange juice, the first inroad on the Times, the sweet shock of the obituaries ― round the bend, the grocer, the wine shop, the Brattle Theater ― a Marx Brothers Festival, neither camp, amusement nor nostalgia for him ― the grilled fretwork of the Loeb Theater.
And there she was.








A sibila, Augustina Bessa-Luís

Mais uma dica de livro pra vocês: A Sibila, da Augustina Bessa-Luís. A autora é uma simpática velhinha portuguesa quase centenária e o romance é estupendo, um verdadeiro prodígio. Massaud Moisés uma vez fez um elogio enfático que até hoje, depois de tantos anos relendo a obra, ainda me impressiona: "Um universo ciclópico se arquiteta na conjugação de insuspeitadas realidades, como se de súbito todas as coisas, por mais desencontradas que fossem, começassem a dialogar e congraçar-se misteriosamente." Pra quem conhece um pouco que seja a crítica do Massaud, um adjetivo como "ciclópico" é a maior honraria a ser dada a um escritor. E de fato. O livro reúne absolutamente todas as características que esperamos de um ótimo prosador: linguagem elegante e fluente, capacidade descritiva, riqueza psicológica, visão de mundo, condução narrativa. É verdade sim que você vai precisar de um bom dicionário pra acompanhar a leitura, haja vista que o célebre detalhismo da escritora está a pleno vapor no livro: ou seja, Bessa-Luís não é do tipo de autora que se contenta em vestir a personagem com um mero "vestido rosa" quando ela pode colocar um "vestido de popeline cor-de-rosa, túnica panier listrada de branco". Mas, porque ler literatura não é exatamente saber-o-significado-de-todas-as-palavras, afinal de contas elas comumente significam apenas por se inserirem num determinado contexto, afora a beleza que irradiam quando em páginas literárias, então fique tranquilo: você não vai se aborrecer.

Um exemplo do poder descritivo da autora:

Chovia. A água repicava de encontro ao zinco que forrava até meio a porta que ficaria depois cheia de entalhaduras a canivete, marca e presságio da futura estatura de todas as crianças da família que ali se mediam aos dois anos, e cuja altura dobrada seria, diziam, a definitiva.

Agora um trecho do escrutínio psicológico:

E, naquele lar em que o chefe aparecia apenas para ser servido, para aceitar a escolha do melhor bocado e a servidão feliz de todos os que levavam afinal o fardo das monótonas canseiras, Quina recolhia com gratidão a deferência que o pai, tão admirável, tão estranho, tão difícil, lhe insinuava. O amor por ele tornou-se devoção. Ela cortejava-a profundamente, de resto, como usava com todas as mulheres sem excluir as filhas, incapaz de rispidez perante elas, domado por aquele sortilégio de saias, de vozes cantantes, de risos e meneios, de nervosismos lacrimosos e doces tiranias do instinto. Era Quina a primeira a aparecer-lhe no patamar da cozinha, quando o distinguia do declive do monte, de regresso das feiras que frequentava sempre com uma paixão de aventura. 'A bênção, meu pai' ― pedia, com uma exultação íntima, impaciente e quase feliz. Ele encarava-a com o olhar pícaro e fino, que não sabia tornar de todo paternal. 'Deus te abençoe...' ― dizia, devagar. E aquilo tinha o sabor duma cumplicidade, duma pequena folia trocista, contra o próprio Deus.

Absolutamente maravilhoso. Um trecho está numa página e o outro está literalmente na seguinte. Enquanto no primeiro temos uma descrição precisa, concreta e palpável da cena, evocando não somente o efeito sonoro da chuva ao bater no zinco (e por isso o zinco é importante) como o efeito sentimental daquela residência onde crianças eram medidas por entalhaduras numa porta, já no segundo temos não apenas a percepção brilhante da relação pai e filha, revelando nuances da alma de ambos que escritores ruins nem com uma tonelada de celulose lograriam alcançar, mas a beleza e a perícia de expressões tais como "sortilégio de saias" ou "doces tiranias do instinto".








Naqueles morros, depois da chuva, Edival Lourenço, ed. Hedra

Continuando com minhas dicas de livros. Agora de um autor goiano. Sua fama, ao que me consta, é maior como prosador do que como poeta, em especial graças ao seu As centopeias de neon, que, novamente ao que me consta, é tido como um clássico da literatura goiana. O que li de sua poesia sinceramente não me impressionou, embora, confesso, não tenha lido tanto, me restringindo de um modo geral a um ou outro soneto que me ia aparecendo muito por aqui mesmo, nas redes sociais. De todo modo, creio que foi justamente a certa facilidade e fluência do Edival em bailar no sapato chinês da versificação que lhe conferiu um aprendizado importante sobre elegância estilística e ritmo textual. O resultado foi proveitoso: Naqueles morros, depois da chuva ficou em segundo lugar no Jabuti de 2012, um reconhecimento que enaltece a literatura goiana como um todo, haja vista que se o simples ato de preencher páginas em branco com literatura já é por si só dificílimo na província, ouvir uma salva de palmas vinda de outro Estado é uma experiência próxima à de saber que dobrando a esquina pelo jeito existe o mundo. A história é ambientada no século XVIII e fala de um Brasil interiorano estagnado na bateia. Um trecho é o suficiente para que se perceba o alcance literário que o Edival conseguiu:

Para aplacar a urtiga da navalha, o recém-barbeado dissipa sobre o rosto meia concha-de-mão de água-de-flor, emite um sopro redondo de prazer dolorido e aplica leves palmadas ocas nas róseas bochechas. Retira o resíduo de umidade com as felpas de uma toalha branca de rosto, bordada com ponto de crivo e finalizadas com frufrus e babados de renda grossa. Uma vez mais, confere-se no espelho e por se achar conforme, um ar de satisfação, um quase sorriso, ilumina seu rosto descampado. Pule a arcada de dentes nativos e sem defeitos com cinza selecionada, na frente, no fundo, por fora, por dentro, de cima, de baixo, de baixo para cima, de cima para baixo, usando escova com cerdas de crina de cavalo árabe com cabo de marfim de Abriz. Ao depois faz bochecho com raiz de orégão asiático ferventado em vinho branco, que é para manter os dentes claros, as gengivas sem dor e o hálito o mais amistoso que puder, de modo a falar de perto com quem quer que for sem pulsar repulso.

Mostrar que a linguagem tem poesia até as tripas é mole, bastando que se observe uma paranomásia como "pulsar repulso", o decassílabo heroico perfeito que abre o parágrafo, o ritmo figurado de boa parte da quarta frase, aliterações como aquela em S na passagem "dissipa sobre o rosto" ou então assonâncias tais como "Retira o resíduo de umidade", onde até mesmo a sinérese em "de u-" entra na jogada. Mas podemos observar também o modo como repiques metafóricos, por exemplo o "rosto descampado", pra mim o melhor do trecho, convive com passagens de uma delicadeza notável ("sopro redondo de prazer dolorido") ou mesmo com uma precisão descritiva que afunda a cabeça do leitor em águas de séculos atrás (penso em especial no bochecho realizado "com raiz de orégão asiático ferventado em vinho branco"). Enfim. Maravilhoso. Se por um lado é razoável repreendermos uma aproximação perigosa demais com Guimarães Rosa nos primeiros capítulos, por outro não se pode ignorar que o romancista, ao que tudo indica à medida que escrevia, foi se afastando de seus grandes modelos até entregar um livro onde um domínio linguístico refinado é posto a serviço de uma narrativa envolvente.