"Só garotos", Patti Smith.



A verdade é que a gente compra um livro da Patti Smith pois, bem, é a Patti Smith, um dos cinco ou seis seres humanos mais admiráveis da face da Terra. O negócio é que a gente não espera encontrar uma escrita tão boa assim. Essa mulher compôs Pissing in a river e declamou o The tyger como ninguém. Abarrotar uma brochura, no entanto, do começo ao fim de uma paixão contagiante são outros quinhentos.

Entende? O que vai te fazer comprar o livro não é só o fato de que nos deparamos com personagens históricas como quem esbarra com um transeunte qualquer. Por óbvio que boa parte da diversão do livro está nisto, nos bastidores da fama. Mas eu repito que a linguagem da autora, energizada de lirismo até os cabelinhos, é parte fundamental e quem sabe uma das protagonistas, ao lado por exemplo do amor que a Patti tem pela arte. Quem quiser uma ideia de como isso funciona pode tomar o parágrafo inicial do livro, que engata a marcha de maneira protocolar a partir de uma memória infantil que poderia muito bem ter se perdido numa infinidade de outras (e por isso o adjetivo "vaga" um pouco depois) ― afinal de contas lendo nós cogitamos que visitas ao Humboldt Park eram coisas normais na rotina da família, o típico programa de domingo à tarde quando a molecada apronta muito e os pais precisam fazê-las aquietar os hormônios.

Quando eu era bem nova, minha mãe me levava para passear no Humboldt Park, pela margem do rio Prairie. Tenho vagas lembranças, como impressões em vidro, de um velho ancoradouro, uma concha acústica circular, uma ponte arqueada de pedra. O trecho estreito do rio terminava em uma grande lagoa e vi sobre a superfície um milagre singular. Um longo pescoço curvo ergueu-se de um vestido de plumas brancas.
“Cisne”, minha mãe disse, sentindo minha excitação. Ele tamborilou na água brilhante, batendo suas asas grandiosas, e alçou voo no céu.

Mas então a descrição realça a concretude do que está sendo evocado. Isso de "impressões em vidro" é absolutamente fantástico: consegue colorir a imagem que surge na mente da autora, dando-lhe, a um só tempo, consistência e valor afetivo. É quando passamos para o lado propriamente palpável da coisa, onde um objeto miúdo e singelo como a "concha acústica circular" é colocado habilmente entre dois relances arquitetônicos: "um velho ancouradouro" e "uma ponte arqueada de pedra". Procedendo assim ela consegue abranger a paisagem de maneira resumida e habilidosa, dando destaque às coisas pequeninas e às coisas grandiosas e ainda por cima com a exata tonalidade sentimental, tudo preparando terreno para o "milagre singular" que surge majestosa e pausadamente, o "longo pescoço curvo" erguendo-se "de um vestido de plumas brancas". Já temos uma ideia de que seja um cisne graças ao "trecho estreito do rio" e à "grande lagoa" e até mesmo por ser curvo o pescoço, mas o fato de que apareça à maneira de um espetáculo é um modo especial de retratar aquilo. E claro, não só: estamos imersos na perspectiva de uma criança que só no próximo parágrafo saberá que aquilo é um cisne, e o cisne, ah! o cisne ― símbolo por excelência da poesia.

Daí a importância do episódio para a pequena Patti. Ele serve como uma espécie de epifania, o momento em que uma experiência sem igual marcou à maneira de um sinete a sua existência, deixando bem claro que aquela completude de espírito, aquela beleza e aquele vislumbre deveriam ser perseguidos pelo resto da vida: "Sua visão gerou uma necessidade para a qual eu não tinha palavra". E penso que é isso que faz o livro da Patti Smith tão bonito. O amor pela arte de uma forma incrivelmente intensa, um rastro de fogo que ilumina a estrada por mais que se sofra a noite escura de quem busca um ideal. Não é aquele tipo execrável de auto-ajuda onde frases de efeito servem de anestésico espiritual para um público leitor devastado por uma rotina que tritura seu ânimo. Longe disso. Existe um carinho, um respeito e uma paixão que não se exaure depois que alcança o objetivo. O próprio objetivo talvez nem mesmo exista. Que seria ele? Lotar uma plateia? Autografar um caminhão de livros? Receber uma estatueta banhada a ouro? Claro que não. O objetivo é o de sentir outra vez, e outra e outra e quantas forem possíveis, o "milagre singular" do aparecimento daquele cisne.

Por isso que o ritmo narrativo dado ao livro acelera nosso coração. Ele é um pouco frenético, vai entulhando os acontecimentos sem se preocupar com detalhes biográficos tais como genealogias ou boletins escolares. Você chega na página 30 e encontra a autora dizendo que na primavera de 1967 ela havia feito um balanço da vida:

Eu havia trazido uma criança saudável ao mundo e a deixara sob a proteção de uma família amorosa e culta. Havia abandonado a faculdade que formava professoras, pois não tinha disciplina, foco nem dinheiro necessários para continuar. Arranjara um emprego de salário mínimo em uma gráfica de livros didáticos em Filadélfia.

Considerando que a história começou pra valer foi na página 13 e que o balanço nem chegou a computar as brincadeiras infantis e a figura da garota Stephanie, ou mesmo o pedaço da infância de Mapplethorpe, então creio que conseguimos um vislumbre da velocidade narrativa do livro. É como se a Patti se detivesse só ao essencial. Mas ― e isto é intrigante se formos parar pra pensar ― tratando-se de uma vida tão cheia de prodígios e rememorada pelos olhos de uma poeta, então o melhor do seu melhor ainda assim enche um livro de mais de duzentas páginas. E creio que é justamente esse sentimento aconchegante sentido à medida que objetos notáveis são empilhados a nosso redor que faz a magia do livro, pois é como se a autora olhasse para sua trajetória de vida e buscasse coletar apenas o que consiga dar uma dimensão sentimental àquilo que ela sentiu. Um exemplo:

No Dia dos Namorados, Robert me deu um cristal de ametista. Era roxo-pálido e quase do tamanho de meia toranja. Ele o colocou embaixo da água e ficamos olhando o cristal reluzir. Quando criança sonhava em ser geóloga. Contei-lhe várias vezes que ficava horas olhando tipos de rochas, levando um martelo velho amarrado na cintura. 'Não, Patti, não", ele dava risada.

A descrição do cristal de ametista não chega a ser surpreendente. Ela apenas indica a sua cor e tamanho, o que é meio inútil pois são informações que conseguiríamos presumir pela simples menção à pedra preciosa. De todo modo, o fato de que Robert tenha colocado embaixo da água e que os namorados tenham passado um tempo vendo-o reluzir é algo fabuloso, o tipo de coisa que dá a dimensão certinha da vida tão difícil e ao mesmo tempo tão fascinante que levaram. Podiam, é claro, se ver desencorajados de seguir seu sonho quando chegaram ao ápice de decidir entre comer no restaurante grego ou comprar materiais artísticos, mas, porque sua meta não se exauria num objetivo final, predispunham-se a reconhecer o fascínio da beleza ainda que imersos num mar de turbulências. E é justamente porque o conseguem que rememoram a infância, surgida aqui de forma espontânea e natural uma vez que os personagens estão paralisados diante dos encantos do cristal de ametista embaixo da água.

Meu presente para ele foi um coração de marfim com uma cruz entalhada no meio. Alguma coisa nesse objeto lembrou-lhe de uma velha história da infância, e ele me contou como junto com outros coroinhas uma vez havia bisbilhotado no armário dos padres e bebido o vinho da missa. Não se interessara pelo vinho; mas a sensação estranha no estômago excitara-o, pela emoção de estar fazendo uma coisa proibida.

Nunca saberemos o que o levou a evocar essa memória infantil, mas o fato de que a evocação tenha surgido de maneira simétrica à da Patti demonstra que se trata de um casal que desconhece o que é dar presentes que não possuam significado afetivo profundo. É fantástico e chega a ser até um pouco invejável que tenham conseguido entrar numa sintonia tamanha, ainda mais se considerarmos que o relacionamento entre ambos começou praticamente ao acaso, com Patti vendendo um colar para um cliente e pedindo, de forma impulsiva: "Não vá dar isso a nenhuma outra garota além de mim." Vocês já sabem: o cliente era o próprio Robert e sim, é claro, é óbvio que ele não deu pra nenhuma garota além dela.