Mágicas janelas.

Resenha primeiro publicada no Jornal Opção, edição 2182, aqui. Uma grande honra. Sob a batuta do Cláudio Ribeiro o suplemento cultural do jornal goianiense tem se tornado um dos melhores do país, já contando com textos de críticos do calibre de Dirce Waltrick do Amarante, Lawrence Flores Pereira, Guilherme Gontijo Flores ou Wladimir Saldanha. Atentai-vos!

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MÁGICAS JANELAS

Recebi com alegria a notícia da edição das Odes de Keats traduzidas por Wagner Schadeck, lançada há pouco pela editora Anticítera. Wagner é um grande tradutor de poesia e um pesquisador erudito, capaz de retirar das catacumbas preciosidades como as versões de Vinicius de Moraes para a primeira "Elegia de Duíno" e para o "Homens Ocos". Que tenha se dedicado por quase cinco anos a traduzir seis poemas é notável, ainda mais se considerarmos que, juntos, eles não possuem uma extensão que poderíamos chamar de exaustiva. Por certo no caminho enfrentaremos problemas de tradução notórios, não só por serem poemas com todos os temíveis apetrechos (métrica, rima) como também, em última instância, por ser John Keats.

Digamos, porém, que não é porque sua incumbência é a de traduzir um poema que esta será por definição a coisa mais difícil da face da terra. Depende muito dos trejeitos da nossa vítima e do nível de minúcias a que pretendemos (e conseguiremos) chegar. Existem textos em prosa que são mais difíceis de traduzir que uma considerável fatia dos poemas, assim como existem poemas ruins que, na camisa de força de cinco acrósticos, são uma pedreira maior que um um bom poema sem toda essa queima de fogos. Enfim. O fato é que com as odes de Keats nós podemos dizer seguramente que elas apresentam dificuldades, mas não sei se a ponto de embasar de forma razoável um lapso de quase cinco anos para a tradução. Imagine se seu pós-doutorado dependesse de todo esse tempo para traduzir 320 versos. Imagine explicando isso pros engravatados que pagam sua bolsa. Claro que você vai fazer outras coisas, por exemplo publicar a poesia completa de B. Lopes. Mas ainda assim. É pra tanto?

Wagner é o que ele próprio uma vez chamou de "obcecado confesso". Na ocasião falava, salvo engano, de ter passado sete anos lendo um soneto de Camões (aquele, sobre Raquel e Lia) para, assim, estar um pouquinho mais próximo do mestre. Isso sem dúvidas pode ajudar a explicar o que exatamente ele andou fazendo nesse tempo todo, mas ainda assim não é o suficiente. O alto nível de exigência estipulado pelo próprio tradutor talvez seja a principal razão, no sentido de que pretendeu "reproduzir, não apenas o conteúdo, mas também os recursos isomórficos (consonância e assonâncias) e imagens (metáforas, metonímias, etc.), fixados no mesmo esquema de rimas medidas no decassílabo com andamento iâmbico, pelo menos na maioria dos versos."

Não vou aborrecer o leitor explicando o que cada uma dessas palavras feias quer dizer ("consonância", "iâmbico"). A parte do prefácio que fala da tradução de poesia como "a transcrição de uma partitura original, escrita para determinado instrumento, com arranjo para outro", é mais clara: a tradução deve preservar, "a depender do musicista e da qualidade do instrumento transposto, a harmônica e consoantemente bela." Sejamos, porém, ainda mais didáticos e digamos que você lê o original, desmonta todas as suas pecinhas e coloca-as na lâmina de ensaio. A partir daí observe, dr., a maneira como "unravish'd" (inviolada) serve de adjetivo a "bride" (noiva), bem como a maneira com que "bride" abre o leque num estalo e exibe: "of quietness" (da quietude). Que tipo de ganho a nível molecular existe em usar especificamente o adjetivo "inviolada" e não, simplesmente, "virgem"? Há algum motivo para ela ser uma noiva? Para ser uma noiva da quietude?― E a moral da história é que todo o minucioso relato que resultar de tal operação de análise buscou ser reproduzido na tradução, o que implica, na prática, que você, investindo seu dinheirinho na simpática brochura publicada pela Anticítera, terá feito a coisa certa.





Não é a primeira vez que Keats recebe um tratamento de luxo. Convém lembrar que as Odes já foram apresentadas para o leitor brasileiro, nem sempre na íntegra, a partir de traduções competentes de uma galera do calibre de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Augusto de Campos ou a dupla John Milton e Alberto Marsicano, além de tradutores esparsos como Ivo Barroso, Décio Pignatari ou Leonardo Antunes. Wagner se comunica bem com todos eles, por exemplo ao tomar emprestado a palavra "adufes" da tradução do Ivo para a "Ode sobre uma urna grega" ou então ao traduzir "Tasting" por "Sabendo", mesma opção que Augusto de Campos usara na "Ode a um rouxinol" (é um sentido meio arcaico do verbo, mas, de resto, "saber" e "sabor" possuem a mesma origem em latim: "supere").

São muitos os resultados felizes. A nível individual poderíamos citar um verso como "Que lenda à franja flórea em tua orla traça", tradução de "What leaf-fringed legend haunts about thy shape", quinto verso da primeira estrofe de "Ode sobre uma urna grega". É um verso difícil de ser traduzido, especialmente por conter em seu bojo palavras que, sem o devido cuidado, poderiam abrir as asinhas e duplicar o tamanho de um verso que precisa, de acordo com os parâmetros estipulados, ter um comprimento determinado. Mas não só: a maneira com que a consoante L suavemente deixa sua marca ao longo do verso, mesclada à rima interna entre "flórea" e "orla", ao som anasalado de "lENda à frANja" e, por fim, ao F duplo em "Franja Flórea" ― toda essa coreografia, em suma, é algo agradável (você lê e quase suspira) e consegue corresponder tintim por tintim ao que encontramos no próprio original: veja o L de "Leaf-fringed Legend", o F em "leaF-Fringed" e o jogo em "abOUt thY shApe" ("abÁU dÁI xÊIp": trate de abrir a boca se quiser pronunciar isso).

Noutros podemos elogiar a simplicidade tocante, por exemplo em "Mergulhe fundo ao fundo desse olhar", onde a repetição de "fundo", indicando ênfase e um mergulho efetivo, traduz o que está lá, no lado esquerdo do livro aberto: "And feed deep, deep upon her peerles eyes." Noto também que a ênfase na vogal U durante quase todo o verso, avançando até que feche com o A aberto de "olhar", como se de fato abríssemos os olhos após a leitura, é um modo de traduzir o E do original, que marca terreno num reino capitaneado pela consoante P até passar o bastão para o fonema aberto de "eyes".

Creio que caberia até dizermos, com uma ousadia justificável, que Wagner chegou a conseguir alguns efeitos especiais se brincar melhores que os do original, à guisa de "Ressonando num sulco arado ao meio", que possui não só a sonoridade da consoante S agilizando a leitura (é como se mais do que ler, deslizássemos), mas também a vogal U muitíssimo bem marcada de "sulco" (que recebe, claro, uma forcinha de "num") inclusa entre dois A tônicos: "ressonAndo" e "arAdo". Alie-se ao fato (e desde já me desculpem pelo jargão) de que "sulco" ocupa a posição de cesura no decassílabo heroico que temos, assim sendo, uma frase que mimetiza o sulco, precisamente, arando o verso ao meio. Ora: não consigo ver nada disso no original, que estampa: "Drows'd with the fume of poppies, while thy hook / Spares the next swath and all its twined flowers" (tive de citar os dois versos pois Wagner muda um pouquinho a ordem dos termos).

Claro: não só de sonoridades é feita a tradução. O tradutor das Odes se vê diante do fato de que o poeta usa uns termos um tanto quanto específicos na construção do poema. É o que os franceses chamam de "le mot juste", isto é, a palavra certa, o termo exato.  Veja-se o caso de "thatch-eves" na primeira estrofe de "Para o outono". Jogue no site de buscas que você vai encontrar imagens do que são "thatch-eves". Eu explico: pense numa cabaninha de palha. Ali perto do telhado, o que é aquilo? Parece um beiral, não parece? Pois bem. Foco nesse beiral. É isso aí. Ele é o "thatch-eve".

O ápice das minúcias a que a tradução se propõe, todavia, está nos termos botânicos. Veja-se parte da quinta estrofe de "Ode para um rouxinol":

        A relva, a moita, o pomarejo gaio,
        Roseira-brava, branco pinheirinho,
        A fugaz violeta entre a folhagem,
        O rebento de maio,
        A rosa almíscar a orvalhar de vinho
        E o murmúrio de moscas na estiagem.

Tradução de:

        The grass, the thicket, and the fruit-tree wild;
        White hawthorn, and the pastoral eglantine;
        Fast-fading violets cover'd up in leaves;
        And mid-May's eldest child,
        The coming musk-rose, full of dewy wine,
        The murmurous haunt of flies in summer eves.

Que coisa mais linda, não acha? Você não tem uma planta sequer que foi esquecida na tradução. O objetivo foi esse mesmo: trazer a turma toda, mas sem rachar o acrílico das belas imagens que são apresentadas. Note, por exemplo, a maneira hábil com que "full of dewy wine" (cheia de vinho orvalhado) se transforma em "a orvalhar de vinho". É uma imagem interessante, em especial por tomar um elemento puramente natural, o orvalho, e adicionar um elemento, por assim dizer, dionisíaco: o vinho. É como se a natureza toda se transformasse numa fanfarra. O poeta começa a estrofe dizendo: "Não posso ver as flores a meus pés, / Nem a ramagem que o olor remoça." Ele apenas supõe ("guess") as flores que ali estão, tudo na base dos sentidos. E no entanto, note o grau de riqueza, de detalhes, a maneira com que ele deixa que tudo aquilo invada seu íntimo e se transforme numa bela paisagem. Perder a mão na hora de traduzir com rigor o correspondente exato para cada uma dessas plantas e flores seria uma maneira de baratear o apurado sentimento que o eu lírico demonstra nesta passagem. Fechar os olhos e genericamente imaginar flores a seus pés qualquer um imaginaria; pensar na roseira-brava e no branco pinheirinho, só Keats.





A tradução só me fez torcer o nariz quando, em algumas passagens, ela me pareceu de leitura truncada e confusa. Wagner, de um modo geral, dispensou os sinais de pontuação que Keats dispôs em seu texto, em específico o ponto e vírgula. Veja-se o final da sexta estrofe da mesma ode sobre o rouxinol:

        Agora me parece bom morrer,
        Cessando à meia-noite sem pesares,
        Enquanto o teu espírito depões
        Com êxtase do ser,
        Hei de te ouvir, inda que em vão cantares,
        Enxertando-lhe o réquiem em torrões.

Existe uma guinada no interior da frase brusca demais para que uma simples vírgula dê conta. Isto a partir, em específico, de "Com êxtase do ser" e "Hei de te ouvir". Ainda, a flexão do verbo "cantar" em "cantares" parece desconexa, malgrado o fato de a certo custo ligarmo-la ao rouxinol graças à segunda pessoa do singular usada ao longo da estrofe (veja o "Hei de TE ouvir"). Faltou uma vírgula, quem sabe: "inda que em vão, cantares". Todavia, de onde veio esse "lhe"? De "do ser"? Eu sinceramente não sei. Diz o original:

        While thou art pouring forth thy soul abroad
        In such an ecstasy!
        Still wouldst thou sing, and I have ears in vain
        To thy high requiem become a sod.

A tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos consegue dar conta do recado com clareza:

        enquanto em tôrno a ti vais derramando tua alma
        com todo êsse arrebatamento!
        Cantarias ainda; mas de nada valeriam meus ouvidos,
        para teu alto réquiem transformados em relvosa terra.

Não sei como este problema poderia ser resolvido no caso citado, mas poderíamos ficar também com:

        E afoito amante, nunca, nunca beijes,
        Embora a meta à frente, não te agraves,
        Não se esvai ela, mesmo que a desejes,
        Sempre a amarás, sendo ela sempre linda!

O original:

        Bold Lover, never, never canst thou kiss,
        Though winning near the goal yet, do not grieve;
        She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
        For ever will thou love, and she be fair!

Até que está tranquilo de entender, embora esse "Não se esvai ela" tenha me parecido cacofônico demais e sem necessidade (bastaria a ordem direta: "Ela não se esvai"). O ponto que faço é que poderíamos contar com sinais de pontuação além das vírgulas indicando melhor a maneira com que as frases do original se descabelam. Era a praxe de poetas românticos.

        Morrer ― é ver extinto dentre as névoas
        O fanal, que nos guia na tormenta:
        Condenado ― escutar dobres de sino,
        ― Voz da morte, que a morte lhe lamenta ―
        Ai! morrer ― é trocar astros por círios,
        Leito macio por esquife imundo,
        Trocar os beijos da mulher ― no visco
        Da larva errante no sepulcro fundo.

Isso é Castro Alves em "Mocidade e Morte". Os dois pontos e os travessões existem para realçar as gradações do sentimento, não apenas a maneira como se atropelam e sobrepõem os "dobres de sino" à "Voz da morte", mas também quando agravam a situação retratada e avançam dos "beijos da mulher" direto para o "visco / Da larva errante". Às vezes parecem até pontadas de sofrimento: "Ai! morrer". Em dois versos e se valendo de alguns travessões o poeta faz um verdadeiro trabalho de dobradura com a morte, indicando que ela existe nos dobres de sino sob a forma de uma voz que, fúnebre, lamenta a morte do condenado. Só que, graças à interjeição do poeta, é como se ele próprio se comparasse ao condenado, permitindo, assim, que se dê prosseguimento a seu périplo de guinadas violentas. Num poema que contrapõe camadas de sentido de maneira energética, claramente visto no título e em versos como "Leito macio por esquife imundo", é impensável transformar tudo num manancial de vírgulas. Faça você mesmo o teste. Não vai dar conta.