Dois poemas.

E o dia da mulher. Uma data no geral repartida ao meio, com, de um lado, justas reivindicações e desagradáveis lembretes necessários, e, do outro, o reino encantado das homenagens. Sabem como é. Um maremoto incrível de textos ruins e melosos, todos falando da mulher como uma criatura mágica que vomita beleza dos lábios e humaniza o solo calcinado por onde pisa. É uma coisa com pretensões poéticas tão exageradas, é uma coisa banhada numa oratória tão carregada, que, mesmo se desconsiderássemos aquela crítica recorrente de que enquanto no bendito oito de março colocamos as fêmeas da espécie humana num pedestal, nos outro dias fazemos ―――; mesmo se o desconsiderássemos, ainda assim haveria algo de podre no reino da Dinamarca. É simples: desconfie de quem precisa lançar mão desses jardins floridos desmontáveis e de quem repete a palavra “paixão” a ponto dela marcar presença no texto mais até do que as vírgulas. Desconfie do mesmo modo que se desconfia de quem num comício banha de elogios o político disfarçado de cidadão do povo.

Não estou desmerecendo a data nem nada. É só que não dá pra comprar com tanta presteza toda essa ladainha de respeito e gratidão. E veja que não preciso nem ser feminista pra falar isso. Não vou ficar aqui desfiando aquele rosário estatístico na frente de todos, nem tirando da cartola mágica as grandes mulheres apagadas da história. Quero crer que esse é o tipo de coisa que demanda uma simples pausa e uma capacidade empática ainda capaz de responder a estímulos externos. Ter minhas críticas a algumas alas feministas de modo algum me impede de, abrindo a página de um jornal goianiense, achar estranhíssimo que numa publicação comemorativa com quinze poemas para o dia “delas”, tenhamos um total de oito poemas saídos da pena “deles”. Digo: qual o sentido de fazer esse tipo de coisa? Passar mais uma demão de lirismo na fachada do segundo sexo? Só pode. É muito bacana ver poemas que me tocam profundamente, como aquele do “Suspira” (Dante) ou aquele dedicado à Mãezinha (Tolentino). Mas porque cargas d’água não selecionar, simplesmente, quinze poemas de mulheres? Achar quinze grandes poetas mulheres no mundo todo não tem como ser difícil. Afinal de contas, com uma seleção assim você ganha o adicional de não precisar ficar tratando a mulher como se ela fosse uma prataria chinesa no meio de um vendaval, de tão delicada e frágil que aparenta. Simples assim. Sei que a intenção foi boa. Mas gente.





Esses dois poemas aqui, por exemplo. Um deles veio de um dos maiores nomes de nossa poesia, a grandiosíssima Cecília Meireles (salve, salve). O segundo é de uma contemporânea que... Olha. Eu nem sei. Quando você se torna suspeito pra falar alguma coisa de um poeta contemporâneo, ou é porque você é parente, amigo ou vizinho, ou é porque você é um desses que seguem a boiada e batem palmas, ou então é porque você realmente acredita que aquele nome é digno de algum interesse, não bem o de colocar algum tipo de óbolo nos olhos fechados do gigante da poesia. Como a segunda opção me parece inaceitável sem que eu pelo menos pudesse dispor de uma ampla defesa e de um devido processo legal, quando o assunto é Juliana Krapp eu fico com a terceira opção, no sentido de que ela é um dos nomes mais louváveis dessa tal de poesia contemporânea. É sempre de uma cautela necessária repetir que isso não quer dizer que pretendo fundar um fã clube da poeta, mas, apenas, que leio com entusiasmo o que ela escreve, sabendo que já gostei de muita coisa e que posso gostar de muito mais. Não precisamos retirar do coldre as flácidas pistolas de acusações de sectarismo ou clubismo, como se fizesse algum sentido lamber a sola de alguém quando se é pouca coisa mais que uma pulguinha no meio da coisa toda.

            Pescador tão entretido
            numa pedra ao sol,
            esperando o peixe ferido
            pelo teu anzol,

            há um fio do céu descido
            sobre o teu coração:
            de longe estás sendo ferido
            por outra mão.

O que há pra ser notado no poema da Cecília  (esse daí de cima, intitulado “Desenho”), caso eu quisesse ser um pouco mais sucinto pelo menos hoje, seria, de início, duas das características mais marcantes de sua poesia, a dizer: a leveza do poema e a fina temática transcendental. Aqui seria bom notar que existe uma concreção admirável também, de um tipo que a vaga substância de muitos de seus versos não ostenta. Claro que toda a cena, com caracteres relativamente objetivos e um retrato, eu digo com segurança, enxugado, será arrematada por um conteúdo de ordem muito maior.

Os versos ímpares da primeira estrofe possuem oito sílabas e os versos pares possuem cinco. Todos os versos possuem uma cesura na terceira sílaba, o que ajuda a criar um compasso agradável, embora um pouquinho incomum visto que uma alternância entre versos de sete e de cinco sílabas seria mais esperável. Duas rimas em cada estrofe, fazendo com que aquilo da música ou da leveza seja visto de maneira fácil e direta pelo leitor. O primeiro verso desta estrofe e o da próxima apresentam um adjetivo que caracteriza o substantivo no início do verso. Aqui, no caso, “entretido” qualificando “Pescador”. No terceiro verso, que rima com este primeiro, teremos de novo um adjetivo, “ferido”, só que um adjetivo que também irá surgir no terceiro verso da segunda estrofe. Pois bem. Ocorre que nos versos pares nós temos substantivos. É algo que cria uma demarcação um pouco mais visível no poema, a que se pode adicionar o fato de que o poema é todo construído com base em frases que possuem dois versos de extensão, separadas, depois, por vírgulas e, no último caso, por dois pontos. De novo, mais uma fonte para a cadência privilegiada o texto, a que se pode adicionar o fato de que enquanto temos rimas paroxítonas nos versos ímpares, nos versos pares temos rimas oxítonas. Não sei se existe outro aspecto formal digno de nota no poema, que não alguns jogos sonoros internos aqui e acolá, por exemplo a aliteração em P no segundo e no terceiro verso (envolvendo “pedra”, “esperando” e “peixe”), a aliteração em S do quinto e do sexto verso (“descido”, “sobre” e “coração”), a assonância em E nos três primeiros versos (“Pescador”, “entretido”, “pedra” e peixe”), nada muito marcante em específico se apontarmos para uma correspondência fraca mas com um certo efeito a partir de “Pescador” e “sol”, bem como uma assonância em I no quinto verso, envolvendo “fio” e “descido”. Nada, todavia, que se valha de palavras exóticas, de sonoridades muito marcantes ou de torneios sintáticos consideráveis. Na verdade, tudo no poema é muito límpido, e sua estrutura interna não prejudica a naturalidade com que se lê a única frase que o poema compõe.

O pescador a que o poema se dirige é alguém que não conhecemos, mas não acho que isto seja o suficiente para que ele seja exatamente uma figura enigmática. É, antes, qualquer um de nós. O que eu notaria é que a pesca é uma atividade humana extremamente antiga, o tipo de atividade ligada ao que nos seus primórdios a raça humana fez e algo intimamente conectado à ideia de sobrevivência. Mas, claro, podemos ir além, visto que o ofício da pesca é um ofício com poderosas conotações bíblicas. Cristo era um pescador de fato e era também um pescador de almas. Assim, pela simples conversa com um pescador nós já temos subsídios que o ligam de modo mais amplo à humanidade e que abrem um precedente, por assim dizer, para que a divindade se adentre.

O pescador está entretido. Quer dizer que ele está muito atento para com algo, embora saibamos que o termo “entretido” também possa dizer que o pescador de algum modo está se divertindo. É interessante, pois dá a entender que seja lá no quê o pescador estiver entretido, é como se ele estivesse emaranhado, preso. Quando estamos entretidos, nós mergulhamos de cabeça (e a ideia do mergulho parece ser uma maneira adequada de traduzir a situação). Mas ele está entretido “numa pedra ao sol”. Ou seja, ele está iluminado pelo sol. Imaginamos de pronto uma paisagem calma, visto que a partir do pescador imaginamos uma paisagem marítima, especificamente na orla do mar. O pescador numa pedra, só que iluminada pelo sol. Portanto, numa paisagem firme, sólida, contraposta à incerta superfície do mar. O pescador está emaranhado naquela cena, e nós também nos emaranhamos de maneira muito rápida no poema da autora graças à sua construção envolvente. O poema diz: “Desenho”. Um tipo de título vago que Cecília muito usará no decorrer de suas obras, indicando uma procedência às vezes pictórica e às vezes musical, por exemplo quando, naquele celebérrimo poema, ela usa “Retrato” (o título do livro, aliás, é Retrato Natural). O fato é que esse desenho é um construído de forma habilidosa e com poucas pinceladas.

Mas depois temos a ideia do peixe ferido pelo anzol. Obviamente, o pescador pesca. Que ele aguarde denota paciência, virtude necessária para quem se dedica ao ofício. Todavia, note que não é que o pescador como que aja. Não é que ele corra atrás do peixe, não é que ele lance a linha, esse tipo de coisa. Ele espera pelo peixe ferido pelo anzol. Isso cria uma passividade. Ele está entretido, mas essa maneira de estar entretido é uma maneira apática. Os apóstolos passaram um dia inteiro tentando pescar e não conseguiram nada. A pesca parece, realmente, ser um trabalho de paciência que corre o perigo de não dar em nada, a depender de onde você resolva pescar. Foi só com a ajuda de Cristo que os apóstolos conseguiram alguma coisa: ou seja, só com a intervenção divina. Essa passividade, creio, pode ser vista se atentarmos que o único termo em toda estrofe que denota algo mais energético ou mais enfático é “ferido”, visto que este é o momento que perturbará a calma do desenho: o momento em que o peixe for fisgado. Todavia, enquanto tal momento não chega, o pescador apenas aguarda...

Aqui, porém, a reviravolta. Os versos ímpares ainda terão medida octossilábica, mas devo notar que os versos pares, por sua vez, apresentam um jogo de compensação: enquanto o sexto possui seis sílabas, o último possui apenas quatro. Cabe também citar que a cesura já não é predominante na três, visto que o verso cinco e o verso oito apresentam cesura na segunda sílaba. Uma perturbação quase que imperceptível no plano do poema, esta que é operada na segunda estrofe. De todo modo, um fio descido do céu sobre o coração do pescador. Traduzindo: quer dizer que ele está ligado a Deus. Assim, a condição terrena do pescador é de pronto ligada a uma condição muitíssimo maior. A tranquilidade com que esse fio descido do céu é apresentado é também digna de nota, sem qualquer nota mais enfática ou qualquer estardalhaço, ao contrário do que não raras vezes os poetas costumam apresentar, falando de Deus sempre como algo que perturba, inquieta ou apequena a condição humana. Quase que uma constatação, eu diria, de modo que o movimento óptico que fazemos é o de partir do elemento central e humano do poema, o pescador, para depois descermos até o peixe ferido pelo anzol (elemento animal portanto) e, então, subirmos de maneira indefinida (“longe”) até o céu (elemento transcendental). É como se Deus também fizesse uma pesca: Deus, o pescador de almas, como sugeri antes. Realmente, é o que os dois últimos versos dirão, terminando de amarrar o texto de forma admirável. Outra mão fere o pescador. Mas note: “de longe estás sendo ferido”. A escolha do tempo verbal é importante. Enquanto o pescador estava ao arbítrio do peixe, do ponto de vista de um plano divino é ele, pescador, que está sendo ferido. Não é que Deus aguarde que o pescador pegue ou se fira no anzol que Ele lança. Na verdade, aquele instante de calma tão incrível que o poema apresenta, aquela claridade estupenda, tudo isso denota uma presença maior capaz de traduzir e coroar a placidez sentida ao ler o desenho de Cecília . É como se, após um instante de quietude tratado de forma tão direta e tão gostosa, com tanta concreção, Deus se tornasse necessário. Ricardo Domeneck, de quem, a partir de um texto sobre o dia das mulheres do ano passado, tirei a sugestão de colocar estes dois poemas juntos, diz que “a concretude e música áspera” dos melhores poemas da autora “ainda estão entre nossas melhores tentativas de redenção neste país de assassinos.” Irretocável.

Com Juliana Krapp a coisa muda um pouco de figura. Seu poema se chama “atributos”:

            Gostaria de ser uma mulher
            que soubesse identificar um brocado
            uma cerzidura um carmesim um
            adorno
            em matelassê

            No comércio
            a palavra aviamentos me lembra
            de que há todo um reino de malícias
            que desconheço
            – penso
            não em ilhós
            mas em aves aquáticas
            artefatos explosivos

            Gostaria
            de poder dizer: vamos desenlaçar
            o cordão do meu quimono vamos
            providenciar castanhas doces
            para o grande banquete
            e nos deitar sob o dossel à espreita
            das comissuras
            que ardem na pele

            Porém
            eu estou atada
            ao mundo da sonolência
            e das cintilações breves
            da louça quebradiça e da mixórdia
            – ao lugar
            das mulheres e bichos
            que se espatifam n’água

Aqui já não enxergamos um plano transcendental. Antes, temos afiada e apurada crítica social. Quando falamos em atributos falamos em qualidades, e que alguém possua atributos ou qualidades é algo desejável no jogo da sedução. Ocorre que, se considerarmos o caso da mulher, é como se os atributos exigidos de uma mulher para que ela seja uma, digamos assim, candidata a recatada e do lar (sem demérito nenhum, claro, a quem escolha uma vida assim, desde que uma vida assim não seja a única opção de fábrica), fossem atributos envoltos numa aura de futilidade e numa espécie de exigência que reduziria a mulher a posições subalternas. (Angélica Freitas tem alguns dos poemas mais mordazes a respeito dessa coisa dos “atributos femininos”: veja-se o caso da sequência uma mulher limpa.) Digo: que tipo de atributo pode existir em saber reconhecer um brocado, um carmesim? Se você trabalhar no ramo pode até ser, mas pra quê uma mulher deveria se doer de não saber reconhecer algo do tipo? Não parece inútil que se exija um atributo desses? Podemos sempre redarguir que no frigir dos ovos saber pra que lado torcer pra desparafusar algo é também um conhecimento bobo, embora neste caso tenhamos o tipo de informação que pode ser muito útil para a administração doméstica direta, diferente do caso de reconhecer um carmesim. E não só: é o tipo de informação útil a tal ponto que nem caberia restringi-la a um dos gêneros visto que é do interesse de meninos e meninas saber pelo menos quais os primeiros procedimentos quando uma pia entope ou quando uma lâmpada queima. Com reconhecer um brocado, por sua vez, temos quando muito um critério de embelezamento, o famoso ficar bonita para, num círculo vicioso, ter mais atributos. O famoso ser prendada, que, claro, também envolve noções domésticas fundamentais, como lavar e passar uma roupa ou cozinhar uma marmita daquelas. De novo, entretanto, temos o mesmo comentário: restringir esse tipo de técnica tão essencial a apenas um dos sexos é tolice.

O ritmo do poema é feito de maneira podemos dizer até livre, embora eu reconheça basicamente duas medidas ao longo do poema: versos longos com cerca de oito, nove sílabas (a contagem por certo é muito cambiante), e versos menores que vão de versos com apenas uma sílaba, por exemplo “um”, até aqueles girando entre as cinco, seis sílabas. Isso vai criando um pequeno sistema de ênfases ao longo do texto: note como os três primeiros versos possuem uma medida parecida que depois é cortada por medidas muito mais curtas. Na segunda estrofe teremos um início curto, uma coisa meio narrativa (pelo fato de começar indicando o local), depois dois versos longos que de novo serão cortados pela ênfase no “que desconheço”, seguido de um travessão e de outros dois versos curtos, mais uma vez enfáticos (note em específico o “penso”) e outros de tamanho mediano. Na terceira o prosseguimento é análogo, acentuando “das comissuras / que ardem na pele” (uma das passagens centrais no poema) e na última teremos um procedimento análogo ao da segunda, no sentido de que existe um recorte efusivo não no final e sim no meio, também precedido de um travessão. Enfim. Sinceramente não acho que seja nada lá muito notável, cumprindo, eu diria, mais uma função de dar relevos aqui e acolá a um poema que também tem como característica o fato de ser escorreito. Assim, para arrematar com mais um exemplo, em versos como “uma cerzidura um carmesim um / adorno” o que temos é uma sequência que vai se acelerando até o momento em que ela quebra, à maneira de uma pausa pra respiração, e coloca “adorno” num só verso, reduzindo, de resto, tudo o que o brocado, a cerzidura e o carmesim são: adorno.

As imagens referentes a tecidos e aviamentos adicionam toda uma sutileza e delicadeza ao poema. Naturalmente irônicas, traduzindo muitos dos clichês que por exemplo usamos pra caracterizar a pele ou a beleza feminina em exposição. Mas faço também notar que são tecidos que cobrem a pele, e, considerando coisas como o “adorno / em matelassê”, temos um certo luxo que embeleza quiçá de forma excessiva. Querer reconhecê-lo pode ser, de forma insuspeita, uma maneira de querer reconhecer que tipo de coisa é essa que cria uma crosta de embelezamento em torno da figura feminina, quem sabe escondendo aquilo que de fato ela é. Veja no caso do comércio, na loja de aviamentos. O eu lírico diz que a palavra o remete a todo um reino de malícias. De pronto me lembro da maneira com que Ana C. pôs de cabeça pra baixo aquele belo soneto do Bandeira sobre os olhos das meninas sérias, evidenciando o que de fato existia ali por trás. Ora: numa loja de aviamentos, onde a mulher com atributos exerce toda sua ciência, de que modo existiria uma malícia? A malícia de que o espaço da mulher seja aquele, de tecidos e adornos: máscaras? Ou uma malícia quem sabe de conotações sexuais, se pensarmos que esses tecidos entram em contato com a carne nua? Parece estranho que se pense em algo do tipo, mas quando nos lembramos que associar o luxo de coisas como um brocado à luxúria não é algo tão inusual nem é uma imagem tão rarefeita em propagandas, a sugestão ganha certa coerência, ainda mais considerando que teremos um quimono que irá pedir pra ser desenlaçado já na próxima estrofe (e afinal de contas num quimono dá pra se encontrar um brocado e um adorno em matelassê).

Mas depois a poeta diz: “penso / não em ilhós / mas em aves aquáticas / artefatos explosivos”. Ilhó é um orifício circular por onde se passam fios. Você tem um monte no seu tênis, por exemplo. Claro que ela não vai pensar só em ilhós (ligados, por óbvio, aos tecidos e à loja de aviamentos), pois, apesar de dizer que gostaria de saber reconhecer esse tipo de coisa, existem ductos de ironia que atravessam todo o texto. Mas note que, aqui, “ilhós” cumpre uma função sonora, no sentido de que se liga a “ilhas”. É até possível que, se você não soubesse o que são ilhós, pensasse que fossem justamente um tipo peculiar de ilhas. De fato, ela não quer ilhas também: ela quer a liberdade das aves aquáticas, que podem sobrevoar o oceano. No âmbito literário, a ave aquática mais famosa é o albatroz de Baudelaire, o príncipe dos céus que, após cair nas garras de uma tripulação carniceira, foi violentado e hoje não consegue mais voar. Ave aquática, no poema de Juliana Krapp, me parece sim ser um símbolo da poesia, ou, caso o leitor não queira chegar a tanto, ele pode simplesmente associá-la à ideia de liberdade. Agora veja o caso dos “artefatos explosivos”. O poeta moderno ataca a sociedade, e o caso de Baudelaire é mais uma vez paradigmático, embora também possamos nos lembrar do Drummond que manifestou um dia o desejo de dinamitar a Ilha de Manhattan (na verdade ele constatou, de maneira triste, que era incapaz de fazê-lo). O poema como uma bomba é uma imagem forte, e a crítica social empreendida por Juliana Krapp no seu faz com que seu poema se assemelhe, justamente, a uma.

Logo depois teremos a imagem de se tirar o laço do quimono, só que agora dirigido a outro alguém: “Gostaria / de poder dizer: vamos desenlaçar / o cordão do meu quimono vamos”. A ênfase em “Gostaria” é digna de nota, mas acho que a ideia do cordão do quimono também, visto que, embora possamos imaginar uma nota de sensualidade, visto que se você tira o cordão do quimono você na prática tira o quimono, acho possível também lermos nisso de tirar o cordão do quimono uma maneira de libertar aquela mulher, mesmo porque, como sugeri, num quimono podemos encontrar aqueles adornos antes citados. Só que, neste ponto do texto, o plano é tirar o quimono (ficando, pressupomos, nu), aproveitar o grande banquete, colocar de lado aqueles adornos e poder sentir as “comissuras / que ardem na pele.” Ora: comissura é um ponto de encontro. São locais privilegiados de erupção. Note que o banquete envolvia castanhas doces, um alimento leve, e note que se sugeriu deitar num dossel à espreita. À espreita do quê? Dessa tal erupção? Obviamente, visto não só pelo fato de que o poema explicitamente o diz mas também pois tudo nesta estrofe é muito leve. Na verdade, com exceção dos artefatos explosivos não encontraremos nada de muito impactante. Temos aqui a ideia do dossel dando um frescor à cena, de modo que a comissura arder na pele mesmo que debaixo de um dossel indica que é outra a coisa que incomoda o eu lírico. Se, como dei a entender, se está nu em pelo e se você está com um banquete preparado debaixo de um dossel, então o ardor só pode ser interno. Ele não pode ter vindo de fora. O ambiente, quando muito, propicia que as comissuras ardam.

Mas então a reviravolta. Estar atado ao mundo das sonolências é estar atado ao mundo apático dos atributos imbecilizantes, um mundo onde inexistem artefatos explosivos. Isso explica também a bela expressão “cintilações breves”. As comissuras que ardem vão ficar ardendo de maneira miúda, sem, por exemplo, que aquela malícia antevista na loja de aviamentos algum dia chegue a ser algo libertador. Ilhós, ilhas apenas. A aliteração em S do verso anterior, deste e do próximo, cria uma suavidade digna de nota que é, contudo, rompida por “mixórdia”, onde, graças ao /ks/ do X, temos uma espécie de rompimento. A poeta está atada. Isso ajuda a explicar o ilhó versos antes, visto que um ilhó justamente te ajuda a fazer nós ou laços ou sei lá. Podemos nos recordar também que enquanto ela quis que se desenlaçasse o quimono estrofes antes, agora ela está atada como se também estivesse ferida por algum anzol, só que desta vez não um anzol libertador que a conectasse a uma realidade transcendente maior.

            – ao lugar
            das mulheres e bichos
            que se espatifam n’água

Note que ela equipara as mulheres e os bichos. Note que ela está atada a algum lugar. Não é esta a fórmula de muitas ofensas machistas, que dizem que o lugar de mulher é lá, acolá, aqui, não-sei-onde? O lugar da mulher é onde ela quiser, retruca o feminismo. Por fim, note: “que se espatifam n’água”. O de “n’água” é um modo de simular o golpe que a mulher ou o bicho dá quando se adentra na superfície aquática. Um modo muitíssimo habilidoso de sugeri-lo, aliás. Mas como assim se espatifar na água? O único bicho que ela mencionou antes foram as aves marinhas, animais que cruzam os ares tendo o mar somente abaixo de si. Quer imagem para a liberdade melhor do que essa? Pois é. Mas se o bicho, por exemplo, se espatifa na água, pelo uso mesmo do verbo “espatifar” temos uma ideia de que é jogado ou, até pior, de que se afoga. Um pouco antes ela disse que está atada a “louças quebradiças”: tais louças também se espatifam. Afinal de contas, a mulher é uma rosa, uma flor, é delicada. Logo, é quebradiça. Logo, se espatifa. Uma terrível Death by water, podemos dizer, onde a mulher, ao invés de singrar os mares como os nautas lusíadas ou a ave marinha, se espatifa naquela amplidão líquida. Num belo poema, Marianne Moore fala do mar como um cemitério (o título é A Grave), mas começa se dirigindo a um homem que tapava sua visão daquele mesmo mar. À mulher não é dado vencê-lo. À mulher é dado apenas se espatifar.

Atada a alguma coisa maior, ela está presa aos adornos e jamais aos mares nunca de antes navegados. A linha de pesca deixou de ser libertadora. No poema de Cecília, do plano humano, passivo, fomos para o plano animal, onde o destino do peixe é o de ser ferido de morte, afinal de contas o que lhe aguarda é o anzol de um pescador. É somente quando consideramos o plano transcendental que a relação de pesca é capaz de desvencilhar. No poema de Juliana Krapp, a situação da mulher é reduzida a uma situação animalesca, de modo que não se trata nem mesmo de dizer que a mulher está na posição do pescador, que de modo passiva aguarda sua sobrevivência mas ainda assim se conecta a Deus. A mulher está presa ao plano terrestre sem que o fio que lhe aguarde desça sobre seu coração. Não precisamos e nem devemos cair na resposta simplista de que a analogia estabelecida entre os poemas nos diz que falta à mulher de hoje uma presença divina em sua vida, como se Deus fosse um tipo cômodo de calço. Não é simplesmente que lhe falte essa coisa essencialmente libertadora (seja a religião ou coisas como artefatos explosivos), e sim que algo lhe é imposto (a busca por atributos) e as vias de acesso às comissuras que ardem na pele lhe são bloqueadas.

Terrível contraponto.