Breve ciclo de postagens sobre Ana C. Parte três.



Acho que essa daqui vai ser um pouco mais rápida. Há um apuro imagético, um certo lirismo encantatório em alguns de seus versos digno de nota. Por exemplo "Busco o sopro cálido das caladas faces de junho", no poema que começa com "Velha idade dos primeiros derradeiros". Não só a imagem é boa, como a sonoridade é espetacular, em específico essa paranomásia aí. Quer dizer: nós temos uma ideia mais ou menos precisa do que é poesia, nós esperamos determinadas coisas de um livro de poemas. A modernidade brincou muito com isso, mas quando o poema quer bater asas e alcançar uma espécie de linguagem diáfana, parece que aí sim nós reconhecemos que estamos diante do manancial da boa e velha poesia. Nada, obviamente, muito espantoso se considerarmos a larguíssima base sobre a qual esta percepção se assenta, ou seja, refestelar-se no prosaico é algo que começou a ser feito com Whitman (Whitman muito mais que Baudelaire) e só se tornou um projeto, ou algo do tipo, há uns cem anos atrás. E falar dessas coisas na poesia de Ana C. é importante pois, como tenho repisado bastante, se trata de uma poesia que vai do anseio confessional à consciência da construção verbal especializada que é o poema, de modo que, entre um e outro, instantes de ironia ou mesmo alguns repiques de construção imagética surgem e cintilam e esplendem um lirismo encantatório, como dito no começo. O que não quer dizer que o cômputo geral seja de poemas alegres e serelepes. Eu diria, antes, que quando um apuro imagético buscando um alcance lírico mais cristalino ocorre, é justamente aí que a poeta se revela depressiva de um modo particularmente intenso. Pois sei que é muito vago isso que falo de instante lírico, embora, ao mesmo tempo, creio que não o seja tanto. Não estou certo de que os exemplos que darei ilustrarão algo, mas, de todo modo, focando ali um espaço meio que delimitado, qual seja, o dos poemas inclusos na sequência inconfissões, acho que poderemos ver melhor a maneira como Ana C. encara alguns dos pedregulhos líricos de sempre (por exemplo o tema do sonho) ao mesmo tempo que encara a realidade soturna de seu íntimo.

Vejamos que desliza. Pois um começo desses, in media res, é comum na poesia de Ana C., e isso é algo que também creio ter sugerido e mostrado na medida do possível. Um mecanismo, podemos dizer, que simula uma proximidade com o leitor, visto que o objetivo aqui não é começar in media res para, como nas epopeias, efetuar uma síntese temporal na hora certa; é apenas começar ali do meio pressupondo que alguma coisa houve antes, ou, então, que, em, algum momento da leitura do poema, nós seremos capazes de preencher as lacunas ou de no mínimo entender a importância que elas assumem para o tema exposto. No caso de que desliza, esse título meio de revestrés não funciona exatamente no sentido de partir do meio do caminho, mas, antes, de servir de caracterização de alguma coisa que será tratada ao longo do poema. Vejamos os primeiros versos:

           Onde seus olhos estão
           as lupas desistem.

Não tem jeito: nós voltamos praquela fala de Sergio Alcides dizendo que a poesia de Ana C. não é essa facilidade toda que as pessoas apregoam por aí não. Há um refinamento dos bons na coisa. A lupa é uma auxiliar dos olhos que nos permite ver as coisas com mais precisão. É muito simples ligarmos a lupa à investigação, bastando que pensemos no camaradinha com um cachimbo na boca e à cata de pegadas e impressões digitais. Não temos como saber exatamente que desistência foi essa das lupas, mas acho que é uma sugestão forte a de que elas tenham desistido de investigar. A diferença é que estamos falando dos olhos de uma outra pessoa: "Onde seus olhos estão". Se temos uma lupa, e se temos o pronome possessivo, então nós podemos concluir que existem outros olhos. Mas a questão é: onde os olhos daquela pessoa mencionada no primeiro verso estão? A resposta mais óbvia e literal é: no rosto, de modo que nós teríamos a situação meio estranha das lupas desistirem de investigar o rosto daquela pessoa, ou, considerando que, como dito, podemos ler um segundo par de olhos nos versos, subentendido, então é como se tivéssemos duas pessoas cara a cara, só que uma investigando a outra de maneira bem detida, científica, até chegar à conclusão de que é preciso desistir por algum motivo (um motivo que desliza: e a mecânica do poema, aliás, vai ser essa de falar de algo que escapa). Mas esta é uma leitura que vai um pouco longe demais. Podemos ser mais simples. Se eu olho para o mar, eu posso dizer que meus olhos "estão lá". É uma expressão até comum, arrisco dizer. Portanto, seja lá onde os olhos estejam (e aqui eu noto que esses olhos podem ser de um terceiro como podem ser de todos nós, ou seja, eu falo dos olhos de um "ele" que também pode ser eu ou você, tanto faz), as lupas desistem por algum motivo. Noutras palavras, estamos diante do tema comum na poesia de Ana C., qual seja, o de deparar-se com algo que escapa à contemplação fria, científica, investigativa. Só que, claro, posto de maneira instigante, de um modo que capta a atenção do leitor. O que se segue é também notável:

           O túnel corre, interminável
           pouso negro sem quebra
           de estações.

Até o cavalgamento em "interminável / pouso negro" é instigante, pois faz com que o verso literalmente não termine (do mesmo modo que o cavalgamento em "sem quebra / de estações" cria, ironicamente, uma quebra que seja). As imagens aqui são todas relativas ao movimento, mas como se estivéssemos num metrô. Subsolo, essas coisas, ou seja, tudo fechado, sem aquela coisa de você sair do túnel. Você está em movimento, é certo, mas tudo é um "interminável / pouso negro sem quebra / de estações". Sendo assim, de todo modo, estamos imersos naquilo e estamos em movimento. Não há um deslizar propriamente falando, mas uma imersão profunda em alguma coisa, como se estivéssemos dentro de um longo e enorme túnel de escuridão.

           Os passageiros nada adivinham.

Naturalmente: o túnel é todo fechado e não temos como ver nada lá fora. Ou seja: as lupas desistiram de algo que é visto pelos olhos, ou algo que, como sugeri também (embora reconhecendo ser uma leitura com menos consistência), que as lupas desistem de contemplar um rosto. Sim. Depois temos essa coisa da imersão no escuro. Porque se as lupas desistem, então você volta pra ignorância. Uma viagem, podemos ler graças à sugestão do túnel que corre, do pouso, das estações. É como se mergulhássemos no íntimo da coisa que desliza.

           Deixam correr
           Não ficam negros

"Deixam", no caso, só pode ser os passageiros. Acho muito improvável que sejam os olhos do primeiro verso. Mesmo porque há a repetição do verbo "correr", ligado, claro, ao túnel. Quer dizer: o túnel continua correndo, e os passageiros o deixam. As lupas desistiram, é certo, mas quem se importa? E mais: eles não ficam negros. Parecem manter alguma coisa de vivo, se ligarmos o contrário do escuro (cores) à ideia de vida.

           Deslizam na borracha
           carinho discreto
           pelo cansaço
           que apenas se recosta
           contra a transparente
           escuridão.

Deslizar na borracha é um modo meio táctil de você desenvolver a ideia. A borracha de pneus, por exemplo, ligados a viagens de qualquer tipo, é negra. Mas acho que Ana C. não se refere à cor, e sim, muito mais, à textura. Certo. "carinho discreto / pelo cansaço". Tranquilo de entender. O cansaço faz com que manifestações de carinho sejam bem discretas, à maneira de você voltar de casa e fazer um agrado pra pessoa que gosta na medida do possível (ou seja, na medida do que seu corpo combalido deixar). Pois basicamente é isso: apesar de "Não ficam negros", de não se renderem de todo, eles vão se recostando, vão se cansando. Estão imersos naquela coisa ali que desliza, aquela coisa que, como sugeri, é algo advindo de onde as lupas desistem. É um tanto quanto triste, ainda mais se pensarmos na escuridão transparente. Não devia ser o contrário? Devia. O que parece nos dizer que não é que as coisas lá fora, ou mesmo que as paredes do túnel, sejam, a rigor, negras. Na verdade, o pouso é que é negro na coisa toda. Essa escuridão ser transparente quer dizer que lá fora as coisas existem, são o que são, mas nós, de algum modo, parece que nos deprimimos. A relação de Ana C. com a realidade não é exultante, à maneira do que um poeta romântico poderia fazê-lo em seus momentos mais lépidos. Esse é um poema bem depressivo, se quer saber. O carinho ser discreto, o cansaço, essa coisa do "apenas se recosta" na "transparente / escuridão", ou, mesmo, a própria ideia de um túnel que corre "interminável", que é um "pouso negro / sem quebra de estações"... E ainda por cima, os passageiros nada adivinham! Só deixam correr... Tudo bem que eles não ficam negros, o que é um indício forte de algo contrário à minha leitura, mas, no final das contas, até que ponto o fato deles não deixarem realmente muda em algo?

Outro que eu acho bem triste é sonho:

           Entre os complementos
           uma massa se agita,
           indecisa.

Complemento é algo secundário mas que mesmo assim ajuda. Uma ajuda, podemos dizer em suma. Só que, entre esses complementos, algo se agita. De duas uma: ou é a própria coisa, ou é alguma coisa lá fora. Não dá pra saber direito, mas o fato é que essa massa se agita e está indecisa. Muito bem. Continuemos:

           Por sobre os remendos
           uma nuvem se estica,
           esbranquecida.

Remendo é reparo. Esse é um dos poucos poemas de Ana C. com uma estrutura rítmica um tanto quanto certinha. Dois versos de seis sílabas seguidos de um menor, que vai de duas a quatro. Rimas parciais em sua maioria, sendo que os versos 2 e 3 da estrofe rimam entre si e o primeiro verso mantém uma relação de rima com todas as outras estrofes. Se uma nuvem se estica por sobre os remendos, é como se a nuvem adicionasse algum tom de vagueza àquilo ali que fora consertado, ou, então, algum toque de lírico, de paz, ainda mais considerando que a nuvem é branca, ou, melhor, "esbranquecida" (intrigante, de resto, como o adjetivo é o maior dentre todos os adjetivos inclusos no terceiro verso de cada estrofe, como se esse adjetivo fosse o único que tivesse se esticado). Enquanto a primeira imagem era de agito, essa daqui já é mais pacata, embora, claro, a ideia dos remendos traga consigo toda uma história.

           Unindo os membros
           uma luz principia,
           unida.

Que membros seriam esses? Os complementos e a massa? Os remendos e a nuvem que se estica? Ou os complementos entre si? Os remendos entre si? A massa e a nuvem? Acho que pode ser isso tudo, desde que se mantenha, de algum modo, alguma coisa daquela sugestão inicial do agito na primeira estrofe e da paz na segunda. E antes que eu me esqueça, a repetição de "unido" ao longo da estrofe parece imitar a união efetuada.

           Entre os complementos.

A luz começar a ser principiada é bom. Quer dizer: o sonho se agita, o sonho é indeciso. Até aqui tudo bem. Mas o sonho não deveria ser o complemento? Porque se a gente aceita que o sonho existe entre os complementos, ele parece possuir um quê de essencial ou de algo que está fora disso tudo, e, até aí, tudo bem, o sonho parece ter muito disso. É algo parecido com o que ocorre com aquilo dos remendos. Nossa vida seria um remendo? Dá pra enxergar assim, mas não sei se colocarmos algo como vida a partir da simples sugestão dos remendos seja uma boa. De todo modo, o sonho se comparar a uma nuvem que se estica é também ok, tudo certo, mesmo porque o sonho dentro de nós parece que se estica. Esbranquiçado eu não sei, mas, se for um sonho bom, até que vai, como se a primeira estrofe sugerisse um pesadelo e essa daqui o contrário. Mas a luz começa a principiar. Na passagem inicial de sua saga, Proust diz que dependendo da posição de suas coxas ele conseguia engendrar uma mulher em seus sonhos. Nunca me esqueci dessa parte. "membros", no poema de Ana C., se referiria aos membros do corpo humano? É mais uma possibilidade. De todo modo, se seguirmos a leitura de comparar tudo o que no poema se inicia com "uma" ao sonho, então o sonho parece ser uma luz também. Uma luz que se principia, como que clareando a vida, de modo que, pela simples sugestão da luz que começa a principiar depois de unidos os membros, seja lá que membros sejam, é uma sugestão que implica alguma coisa de escuro no poema, observável, quem sabe, na massa se agitando indecisa, ou em alguma clausura hipotética causada pelos complementos, ou, então, pelos remendos sobre os quais a nuvem se estica. O fato bruto, porém, é que a luz principia. Mas é entre os complementos. E voltamos à indecisão que o "Entre os complementos" sugere, como se esse final fosse uma espécie de retificação para que não pensássemos em algo positivo demais. Pois o poema sonho faz parte de uma série chamada "inconfissões", onde podemos ler coisas como (de véspera)

           Nesta única ilustração
           Está um único ilustre
           No vazio teto da sala
           Pendurado um lustre sozinho

O tipo de jogo sonoro que dá um esplendor aos versos, sim, sim, mas que, ao mesmo tempo, dá um jeito de cortar as asinhas com essa ênfase no termo "único", seguido de "vazio" e "sozinho". A segunda estrofe segue a mesma lógica:

           No lustre uma lâmpada só
           Na lâmpada um só vestígio
           No fim do vestígio uma frauda
           No canto da frauda um esqueleto

Vamos chegando à coisa essencial, num movimento contrário àquela coisa de apresentar a cena e ir denotando a coisa absolutamente única que existe ali no meio. Aqui vamos desdobrando a caixa dos versos até o momento em que chegamos ao esqueleto. Quer dizer: tudo tende ao unitário neste poema, seja no fato da ilustração ser única (e o termo ilustração acaso se referiria à inteligência ou à mente, tal como o usamos para nos referirmos ao século XVIII?), no fato do ilustre ser único e estar no teto vazio da sala e, ali, um lustre estar pendurado sozinho, bem como no fato de, nesse lustre, haver uma só lâmpada e... Enfim. Já deu pra perceber. Captar a coisa exata, mas, para chegarmos até lá, é preciso esse movimento mental de se captar o vestígio, usando-nos, nesse caso, daquela lupa que no poema anterior fora dispensada. Pois a que um movimento poemático desses serve? No soneto que começa com "Pergunto aqui se sou louca", os tercetos dizem:

           Pergunto aqui meus senhores
           Quem é a loura donzela
           Que se chama Ana Cristina

           E que se diz ser alguém
           É um fenômeno mor
           Ou é um lapso sutil?

Munição legítima para os detratores, naturalmente, mas se e somente se eles se esquecerem que este poema está incluso na sequência "inconfissões", onde a poeta parece querer chegar à coisa essencial, à luz que se principia, sem se olvidar de que está falando de algo que existe "Entre os complementos". Num outro poema da série, diz a última estrofe:

           Eu não sabia
           que virar pelo avesso
           era uma experiência mortal

Existem outras passagens bem bonitas desse poema, por exemplo as duas primeiras estrofes:

           Eu queria
           apanhar uma braçada
           do infinito em luz que a mim se misturava.

           Eu queria
           captar o impercebido
           nos momentos mínimos do espaço
           nu e cheio.

É difícil fazer algo do tipo. No poema contíguo a este, ainda na série, chamado toalha branca, Ana C. diz:

           Uma toalha branca esvoaça ―
           Acontecimento único no espaço ―
                                 embora fluidos se diluam entre dúvidas e certezas,
                                 embora riscos passem invisíveis, vacilando,

Não vou citar tudo. Só isso basta. Há uma longa sequência de "emboras", mas note, por exemplo, que enquanto essa toalha esvoaça, há uma infinidade de coisas que deslizam e que não são percebidas. É dificílimo captar isso tudo. É claro que as lupas desistem. Ou seja (para ir direto ao final do poema):

           uma toalha branca esvoaça
           decompondo-se a cada voo, a cada passo.

No vizinho ante-sonho conseguimos encontrar também passagens que elucidem pontos de sonho, ou que ajudem melhor na hora de olhar a série "inconfissões" como um todo. Lá existe um trocadilho muito bom logo no início:

           O súbito preamar
           amor prelúdio
           anuncia.

Ou seja: "preamar" se desdobra em "amor" e "prelúdio". Só que preamar é maré cheia, e essa maré cheia é súbita. Logo, esse preamar anuncia uma espécie de prelúdio do amor. A coisa tá meio embaralhada pra dar uma realçada no impacto sonoro das palavras, em específico o choque entre "preamar / amor", como se sugerisse, também, no íntimo da palavra "preamar", o mesmo que "amor prelúdio", ou seja, o início do amor. Até aqui tudo bem: ante-sonho é algo anterior ao sonho. Então alguma coisa vem forte em nós e, então, o sonho surge, o que, na primeira estrofe, representaria o preamar súbito anunciando o amor iniciando-se.

           Inesperadas estrelas
           silhuetas
           que se unem
           ajuntam.

Uma conotação sexual básica aqui, de modo que na terceira estrofe de sonho, quando sugeri lermos "membros" como alguma parte do corpo humano; bem, temos um esteio melhor caso queiramos sustentar essa opção. Acho que aqui eu não destacaria nada em especial, quem sabe, apenas, o fato de que a repetição em "unem / ajuntam" (dois verbos que indicam a mesma ideia) serve pra realçar que seriam duas camadas em jogo (logo, no plural) e serve, sonoramente, pra intercalar o E demarcado de "estrelas" com o U que já começa a repontar em "silhuetas".

Mas ok. Fica faltando a última estrofe, mas é tarde e preciso dormir. Acho que o que foi dito ajudou em algo. Ou piorou, vai saber. Fecha a conta e passa pra próxima. Ainda não sei direito o que vou falar amanhã, mas até lá dou um jeito. Câmbio desligo.