Apropriação cultural.



Já começa pelo nome: por mais que com toda boa vontade do mundo tentemos imaginar o que seria isso, antes mesmo de correr em direção à tempestade de vídeos longos que se propõem a explicar tintim por tintim, parece que basta você piscar que a estátua se descasca e revela uma ferrugem terrível. E depois as refutações mais simplistas, a tal ponto que poderia se tornar uma espécie de exercício terapêutico para pessoas com baixa criatividade a procura por exemplos que contradigam a apropriação cultural e mostrem o quanto uma ideia assim é ridícula. Eu repito: basta piscar que pronto: já tenho ideias. Por exemplo: Cruz e Sousa se apropriou da cultura europeia por ter escrito sonetos? Porque se formos realmente responder de maneira positiva a uma pergunta dessas, então a ideia da apropriação cultural dá um enorme tiro no pé: Cruz e Sousa, negro, grande poeta brasileiro, escreveu sonetos. Se tiramos isso dele, é claro que sobra muita coisa (poemas como Antífona ou os poemas em prosa, por exemplo), mas a perda seria inevitável (estou quase caindo em prantos com a simples possibilidade de que um poema como Acrobata da Dor seja apagado...).





Uma das coisas mais básicas num debate que se pretenda sério é que você recrie o argumento da outra parte da maneira mais generosa possível. Se você recria o argumento da outra parte buscando contradizê-lo aqui e acolá (não necessariamente o argumento todo, mas enfim), então você tem que fazer isso de tal modo que se a outra pessoa tivesse acesso a uma versão mutilada dos seus argumentos, ela acharia que você está concordando com ela, posto que tudo o que você fez foi colocar com outras palavras tudo o que ela acha, e, coisa igualmente importante, você demonstrou assimilar aquelas ideias às suas, de modo que você deu mostras de saber se postar diante de situações novas de acordo com as ideias assimiladas. Porque se você não faz isso, então você não está debatendo; você está monologando, está, na verdade, debatendo contra uma versão inteiramente sua do que, supostamente, deveria ser o argumento do outro.

Com a apropriação cultural isso acontece com muita frequência. Ela não envolve simplesmente uma busca por suprimir trocas culturais, o que seria um absurdo uma vez que devemos entender que a cultura é um arcabouço de saberes aberto. A apropriação cultural pega no pé do esvaziamento que fazemos de uma cultura determinada, ou seja, nós transformamos ela numa espécie de estética superficial, em mais uma opção de mercado, e na estigmatização paralela que fazemos dessa mesma cultura, o que gera aquela via de mão dupla que conhecemos tão bem: se uma mulher branca usa um turbante, isso é bom, olha só quanto estilo; se uma negra faz a mesma coisa, olha só que coisa tosca.

Um vídeo consegue explicar tudo isso de maneira admirável:




Parto do princípio que você vai assistir ao vídeo. Essa coisa do esvaziamento cultural concomitante à estigmatização está bem explicado. É o mínimo que você tem que entender caso queira realmente debater de forma séria. Pois tecerei minhas críticas à ideia é com base nele, pegando no pé, em específico, das perguntas feitas perto do final do vídeo, ali nos 10 minutos:

  1. Você realmente quer fazer esse esvaziamento de sentido?
  2. Você entende que existem pessoas que passam por um enfrentamento enorme pra usar esses mesmos símbolos?
  3. Você entende que esse uso é uma estratégia de afirmação e resistência importante para essas outras pessoas?
  4. Você entende que é um privilégio o fato de que você não precisa passar por isso?
  5. Você quer mesmo se aproveitar desse privilégio, mesmo sabendo que você pode estar contribuindo para o esvaziamento desse sentido que é importante para essas outras pessoas?
  6. Usar esses elementos é assim tão importante pra você a ponto de você deixar essas coisas todas [esvaziamento, p.ex.] de lado?

Aquelas frases de efeito no final do vídeo são dignas de nota também:

Isso significa que você tem muitas opções aí à sua disposição, e tem muita possibilidade de ser estiloso e original sem precisar se apropriar de uma cultura que é minoritária e que luta muito pra resistir sem sofrer apagamento, estigmatização e esvaziamento. Com um pouquinho de empatia e um pouquinho de criatividade dá pra todo mundo ser feliz valorizando a diversidade enorme de culturas e de belezas que a gente tem entre a gente.

Ok. Reconfortante, não? Sim, reconfortante. Vamos lá. É um problema sério e de minha parte acho que deve ser enfrentado, mas, ao mesmo tempo, qualquer forma de se cercear liberdades individuais, mesmo que na base da conscientização servindo de fator de abstenção, não me parece ser uma boa estratégia. Acho que todo mundo tem direito de usar o que quiser sem se preocupar em apropriar-se de algo que faz parte de uma cultura minoritária, e inclusive com o direito de ressignificar da maneira que bem entender. A cultura palpita não só com base na conservação, mas também na base da troca e da mudança de elementos culturais. O ponto cego não é esse. O ponto cego não está exatamente no esvaziamento de sentido. Vivemos num mundo globalizado onde as pressões para que culturas querendo ou não esvaziem parte de seu sentido original a fim de que se adaptem à troca cultural são uma realidade, o que não quer dizer que existam extratos da cultura que consigam resistir à corrente e conservar características primordiais, ainda que tratemos do caso por exemplo da cultura cristã, muitas vezes tão esvaziada.

O problema é maior. Mesmo que as pessoas brancas resolvam parar de se apropriar da cultura negra, isso pode até significar que a cultura negra deixará de ser esvaziada, mas não necessariamente que deixará de ser estigmatizada. Os brancos podem simplesmente dizer "ok, não pegamos mais, mas também vocês que se explodam aí no seu canto". Pois devemos convir que mesmo a lógica da apropriação cultural é um passo além da estigmatização total, do apagamento total que via de regra se faz com estratos marginais da sociedade. Não digo que devemos nos contentar com a situação; muito pelo contrário; mas se se apropria da cultura e, pelo menos para aqueles que possuem alguns neurônios ainda em funcionamento, resta como estranha a reação racista que se aplica à cultura negra usada por um negro quando em contraposição aos elogios desabridos dessa mesma cultura negra usada por um branco; bem, isso é melhor do que o silêncio total e sepulcral. Isso pelo menos escancara.

O grande problema está na estigmatização. O combate deve ser aí. Enquanto não atacarmos essa raiz, nós vamos continuar a criar medidas protecionistas que podem não redundar em nada. Então não é que devemos pedir às pessoas mais empatia e criatividade. Empatia é bom, claro que é, mas desde que acompanhada de uma elucubração detida a respeito da situação com que nos defrontamos. É redutor colocar cada macaco no seu galho. Mesmo porque é bom lembrar que isso pode servir de tiro na culatra com muita facilidade. Quando dizemos que nossa sociedade padece de um racismo estrutural, quer-se dizer que ela padece de um racismo que se reproduz, que parece que se adapta diante de soluções paliativas e superficiais. Levarmos a cabo a lógica da apropriação cultural é uma delas. Com toda facilidade do mundo eu posso criar um círculo de giz caucasiano para que negros exerçam sua cultura totalmente seguros de garras brancas. Mas, convém repetir, isso não quer dizer que a estigmatização irá diminuir. Esta é uma solução desvinculada, aliás, do verdadeiro combate à estigmatização. Do mesmo modo que posso criar um Centro de Pesquisa em Culturas Negras numa universidade e entupi-lo de pós-doutores negros, sem tirar nem pôr eu posso manter a mesma retórica racista na porta ao lado, de modo que o pós-doutor negro que resolva estudar a ecdótica da Divina Comédia sofrerá reações racistas inalteradas, haja vista que ele resolveu sair do parquinho que criamos pra ele. Se cultura negra é pra negros, o que demando de você é só isso. Ser nosso papagaio de pirata, capisce?

Não caminhamos bem. A conscientização, o esclarecimento das ideias continua sendo a saída ideal. É ótimo que as pessoas possam se inteirar a respeito dos significados culturais daquilo ali que estão usando, mas se, ainda que inteiradas, ou mesmo que ignorantes, resolverem usar, sem problemas. A cultura é rica em trocas assim. Não podemos criar barreiras de qualquer ordem que seja (ainda que simplesmente de ordem argumentativa) para o fluxo que, aliás, é a única coisa que realmente faz a cultura viva. A narrativa da resistência é comovente, mas ela não pode resistir contra o que não a fará melhorar em nada. Seu objetivo é, algum dia, deixar de resistir.