A arte como esconderijo.



Duas perguntas terríveis: é possível que uma pessoa má escreva um bom poema? É possível que um poema com um conteúdo terrível seja um bom poema?

No primeiro caso, se dissermos que é um bom poema (e todas as implicações que isso traz, ou seja, atenção crítica, apreciação, sentimentos suscitados em quem lê etc etc), então é como se de algum modo esquecêssemos, mesmo que momentaneamente, as atrocidades que a pessoa fez em vida. Pra ela serviria meio que de esconderijo, o que, no segundo caso, parece ser ainda mais evidente. Pode ser que o artista tenha buscado a arte justamente por ela ser o esconderijo perfeito, mas se ele espera, com isso, doutrinar as pessoas fiado numa única interpretação daquilo que ele próprio criou, pode tirar o cavalo da chuva. Nós somos livres para enxergar outros sentidos, sentidos que podem conviver com os sentidos terríveis e não lhe darem atenção, ou enxergarem a qualidade em outra parte da obra que não ali (por exemplo passar por cima do machismo desabrido e focar na inventividade formal), bem como podemos suprimir esse sentido terrível com uma outra leitura que também se mostre válida (na verdade, o que não é nenhum absurdo, a leitura que fazemos pode até ser mais válida que a leitura proposta pelo artista ― a maior parte dos que envolvem "crítica ao capitalismo" nas suas intenções, por exemplo, com grande probabilidade dará uma péssima interpretação pro que fora desovado). Mas pode ser também que sirva de esconderijo e ainda assim tenhamos de lidar com aquele tipo de obra, com aquele sentido terrível, na ausência de qualquer outro à vista. O que não quer dizer, por conseguinte, que nos tornaríamos pessoas piores. Pode ser que nos tornemos pessoas melhores mesmo que diante de sentidos terríveis, de cenas terríveis.

Sinal vermelho, portanto. A arte não é bem um esconderijo. A arte envolve um manejo criativo por parte de seus três polos: há criatividade por parte do artista, há na maneira como a obra de arte é o que é e há criatividade de nossa parte, leitores. Mas, se quiséssemos de forma detida responder às perguntas formuladas, eu notaria, de início, que é simples respondermos à primeira pois basta uma olhada ainda que rápida pra trás. Muita gente cretina fez boa arte. A tal ponto que a pergunta com frequência é formulada nos termos de: "É necessário ser uma pessoa má para que se faça boa arte?" Eu falo sério, não é difícil, ainda que viéssemos a configurá-la da maneira mais impactante possível: se Hitler tivesse pintado a Mona Lisa, o quadro seria pior? Sabemos que Hitler era um pintor com certas habilidades; se suficientes para que o chamemos de bom ou pelo menos de promissor eu não sei, mas acho que compraria um quadro dele se estivesse à venda numa rodoviária da vida. Há uma delicadeza, por exemplo, no quadro com que abro esta postagem. Hitler tinha um certo refinamento artístico. Mas a questão, de todo modo, e apesar da forma bombástica com que foi formulada, não é difícil de responder, eu repito. O julgamento a respeito de se uma pessoa é boa ou má é um julgamento de ordem moral, enquanto um julgamento a respeito de uma obra de arte é um julgamento estético.

Naturalmente que você enquanto leitor pode, dentro de seus parâmetros estéticos, entender que uma moral embutida, por assim dizer, é importante. Se quisermos formular de maneira mais clara, você pode concordar com Russell Kirk que a imaginação moral é um critério sólido para que avaliemos se estamos diante de uma boa obra de arte ou não, isto é, se aquele objeto artístico ali demonstra que o artista soube divisar entre o Bem e o Mal, o Belo e o Feio, a Verdade e a Mentira etc etc. Sim, é certo, este é um critério possível, mas é importante lembrar que esse tipo de julgamento deve se encerrar na obra, isto é, devemos avaliar se ali, naquela obra, teríamos subsídios suficientes para tanto. Se meu argumento se fecha com base apenas nas informações que capto da vida do artista, ou se pareço pender meu argumento demais para que ele coincida com a informação biográfica, então, por conseguinte, eu deixo de falar de obras de arte pra falar, indiretamente (ouso dizer até que diretamente), de pessoas.

Visões moralísticas da literatura costumam naufragar é nessa hora. Pois a obra de arte é uma obra de invenção. Não me canso de repetir isso. A pessoa pode ser um crápula, pode ser um Hitler, mas, se ela vai criar uma obra de arte, ela dá asas à imaginação. Esse é um ponto, suficiente para que a obra se afaste da biografia do artista. Todavia, temos algo além: a obra possui uma vida estética no seio de uma sociedade. Quando lemos uma obra de arte, nosso objetivo não é o de descobrir o que o artista quis dizer, ou descobrir de que modo aquilo ali se encaixa em sua biografia. Este é um tipo de interpretação naturalmente válido, mesmo porque, a esse respeito, temos de diferenciar uma série de coisas: 1) interpretar uma obra e captar dados da vida do artista é uma coisa; 2) fazer isto mas de tal modo que a interpretação só feche graças a um argumento de ordem biográfica é outra totalmente distinta; 3) se eu deixo de interpretar (forma neutra de se postar diante do texto) e passo a valorar, qualquer postura que se assemelhe a 2 será vista com maus olhos pois deixarei de valorar obras para, no fundo, valorar pessoas; e 4) estudar a vida do artista e tentar entender de que modo escrever as obras que ele escreveu tornou do artista aquele ser humano tal e tal, o que é uma maneira certo modo inversa de relacionar os dois polos.

Mas, como dito, quando lemos uma obra arte nós não nos preocupamos com isso, ou apenas com isso, se eu quiser ser mais exato. Posso consumir só na base da arte pela arte. Ou então criar interpretações que podem estar fora do que o artista quis dizer, mas que, ainda assim, possuam uma validade, isto é, sejam leituras plausíveis. Pois a obra de arte afeta nossa sensibilidade. Ela é um objeto que basicamente funciona nesse sentido: despertar sentimentos em nós, das maneiras mais variadas e inventivas possíveis, e de tal modo que pareça ser, até, de certo modo viva por conta própria. Não é uma impressão absurda pois muitas obras de arte apresentam um frescor e uma capacidade estética praticamente inalteradas após séculos, milênios de sua produção, e porque às vezes elas são apreciadas de maneira muito distinta do como eram em sua época ou do como foram pretendidas por seus criadores. É a isso que chamo de vida estética de uma obra de arte.

E se as coisas são assim, então mesmo que eu esteja falando de uma pessoa má, a obra de arte que ela criou parece que se desprende dessa mesma pessoa e passa a caminhar por conta própria. O artista pode ser um crápula, mas a obra de arte pode ir seguindo sua estrada, às vezes até renegando suas origens. É dizer: podemos estar diante de um poema de amor límpido, límpido, daquelas coisas mais cristalinas, daquelas coisas que lemos e até imaginamos o rosto da pessoa amada sorrindo com uma chuva de lírios no fundo; e no entanto, aquela coisinha ali saiu de alguém que dava uns tabefes na esposa sem dó nem piedade, ou que nutria sentimentos repulsivos, tecia loas ao fascismo etc etc.

Não é um absurdo que isto ocorra. É até provável. Quando falamos na criação de obras de arte, embora o ditame da liberdade seja, no fundo, o ditame máximo, ou seja, você pode fazer arte da maneira que bem entender (vamos deixar de lado aqueles casos em que a liberdade da criação artística põe os dois pés nas masmorras do crime, por exemplo um artista que desenterre cadáveres pra que possa fazer um quadro daora); bem, apesar disso, uma liberdade dessas nunca é total, e, na prática, existem constrições dentro do próprio campo artístico que parecem impedir o artista de criar o que bem entender. Os artistas tendem a ser impelidos a que criem arte sobre coisas "artísticas", por exemplo o amor, a esperança, quadros paisagísticos, figuras humanas, sentimentos, essas coisas. Não parece haver um encorajamento ou mesmo uma aceitação assim tão irrestrita para com o artista que queira mesclar política à obra de arte, ou que queira mesclar sentimentos explícitos, com um cunho didático ou pelo menos expositivo mais aguerrido, por assim dizer.

Na prática isso implica que um artista que nutra sentimentos políticos terríveis, uma coisa totalmente belicista, preconceituosa, tacanha, agressiva (enfim: pincele os adjetivos que julgar melhores), graças a essas constrições artísticas (que hoje em dia, claro, se encontram muito mais abrandadas do que em séculos passados, embora eu ainda assim creia que existem) pode ser impelido a escrever poemas de amor, caso venha a criar obras de arte, e não poemas políticos. A arte seria um refrigério, um escape. É como se o campo artístico de algum modo servisse para anular as posturas políticas e sociais do homem de carne e osso, convidando-o, antes, a sublimar essa coisa toda em arte que não trabalhe com esses materiais sujos e artisticamente inferiores.

Estamos nos encaminhando para a segunda questão. É verdade sim que existem casos em que o conteúdo dúbio de um poema não é simples de ser precisado. Ele pode ser um poema deliberadamente ambíguo, e me parece que quando o artista sabe que está defendendo ideias meio esquisitas, ele tende a dar uma disfarçada. Mas o poema pode ser até explícito, só que nós, leitores, meio que de forma deliberada, damos, por conta própria, uma escondida, jogamos debaixo do tapete, fingimos não ver. A resposta que viria em nosso socorro seria precisamente a resposta de ordem biográfica: afinal, esse poema, digamos, meio esquisito... o que o artista, carne e osso, queria dizer?

Se a resposta for positiva, ou seja, ele não quis dizer uma coisa lá muito boa, então a hora é de nos decepcionarmos. Não sei se cheguei a sugerir isto, mas não podemos tratar com desdém informações de ordem biográfica. É importante não reduzir a tarefa de interpretação e apreciação artística ao artista, mas também é importante que não o ostracizemos. Todavia fica a questão: será lícito dizermos que o conteúdo do poema é apenas aquele? Se a obra de arte possui aquilo que chamei de vida estética, então, para todos os efeitos, o que um artista cria é pura e simplesmente aquela obra de arte ali. Os conteúdos que ele tenha querido insuflar podem ser relevantes ou não. O problema é que se estamos diante de uma obra de arte, então devemos aplicar os mesmos princípios que aplicamos a todas, e, mesmo diante da confirmação, do ponto de vista biográfico, que a intenção do artista ao criar aquele poema era terrível, ainda assim é lícito que nós, leitores, enxerguemos aquele objeto como sendo capaz de criar outras mensagens, como podendo possuir um outro conteúdo. Parece estranho nós aceitarmos uma tese dessas pois costumamos imaginá-la no caso real de um artista recente, uma obra recente, uma pulga atrás da orelha que tivemos ao ler aquilo e, posteriormente, a confirmação de uma das hipóteses levantadas. Mas vamos imaginar de outro modo. Vamos supor que estamos diante de uma obra já afastada de nós, um artista morto há muito tempo. Século XVIII, vá lá. Admiramos a obra e achamos que tudo ali são as mil maravilhas, mais puro que o arroz branco quentinho na panela. Todavia, num golpe do destino, descobrem uns documentos perdidos desse artista e, no meio desses documentos, uma carta, uma confissão de quais foram suas intenções para com aquele poema que nós líamos sem qualquer suspeita que fosse. Intenções terríveis, no caso. Como proceder? A obra ganhou uma vida estética paralela. Não podemos simplesmente abandoná-la em prol daquela que acabamos de descobrir. Aquela, por certo, se tornará uma interpretação balizada, sólida e tudo mais. Mas a outra nem por isso deixaria de ser.

Claro que podemos pressupor o caso de um poema panfletário, em que a arte propriamente dita daria alguns passos pra trás para que pudesse comunicar uma mensagem de ordem político-social com mais intensidade. Noutras palavras: a arte recua. E se a arte recua, aquela ideia da arte como um esconderijo para sentimentos torpes (uma vez que a arte dá liberdade a que interpretemos de maneiras que não se restrinjam às intenções do autor) acabaria ruindo. É o instante ideal, o ponto fraco. Ou isso ou o caso daquela arte que troca olhares amorosos com o prosaico, com a linguagem artística despojada de efeitos especiais. Não vou tentar definir o que seriam esses efeitos especiais, mas digamos que são efeitos que ali, no plano da arte, fazem com que nossa atenção se prenda mais no objeto em si do que no conteúdo originário, na intenção do artista. Coisas como metáforas, por exemplo, que podem, por assim dizer, nos embaralhar. Não. Vamos imaginar uma obra de arte que opere com o mínimo do mínimo, e que pareça dar ao leitor (pelo menos ao conjunto de leitores contemporâneos entre si) a sensação de que ela possui poucos sentidos a serem extraídos, e que, de todo modo, esses sentidos não diferem tanto um do outro.

Em um caso ou em outro, se um artista possui intenções terríveis, então essas intenções, graças à maneira como a obra se constrói, seriam mais difíceis de ser ignoradas, relevadas ou qualquer coisa do tipo. Pois uma vez que entendemos que a questão não se dá no sentido de fugirmos de uma verdade, mas de simplesmente apreciarmos e lermos obras de arte em tudo aquilo que elas nos permitam, eu digo que, em verdade, essa questão pode ser formulada sem precisar nem mesmo sair do ponto de vista pessoal, isto é, eu, leitor Fulano de Tal, não consegui chegar a nenhuma outra explicação, nenhuma outra interpretação, e a única maneira que vejo é encarar a realidade que me cabe encarar: a da intenção originária terrível que o artista quis colocar ali. Falei tudo isso de obras panfletárias e obras despojadas de tudo mas, a bem da verdade, apenas desse ponto de vista pessoal eu poderia chegar a tal beco sem saída com qualquer obra de arte que fosse, de qualquer jeito que fosse montada. O sentido terrível originário é um sentido. Se eu não consegui chegar a nenhum outro, me cabe aquele, do mesmo modo que, diante de um soneto escrito no aniversário da vizinha do poeta, se eu não consegui chegar a nenhum outro sentido, vamos lá, o jeito é me contentar com esse daqui mesmo.

Como ficamos?

É preciso reconhecer que a postura de se saborear a arte apenas pelo prazer da arte, essa postura meio parnasiana, formalista, alienada (a hora de destilar seu veneno é essa, leitor: aproveite), possui seus pontos cegos. E esse é um deles. Se tudo nos leva a crer (entendido como: é a única maneira que conseguimos ver) que a obra de arte veicula um conteúdo terrível, então é hora de sim de estudarmos com atenção nossa ética, nossa moral, e nos distanciarmos daquela obra. Não é vergonha fazer algo do tipo. O leitor não deixa de ser um bom leitor porque o faz. Há quem duvide que obras de arte podem aprimorar nossa moral, uma vez que apresentam um quadro moral que acaba sendo uma verdadeira balbúrdia. Outros, como Kirk, acreditam piamente que a arte pode sim nos tornar seres humanos melhores. Exemplos contrários sempre existem, mas o fato de existirem não chega a ser necessariamente uma negativa. Posso me tornar um ser humano melhor ainda que diante de obras que apresentam um quadro humano terrível, e falo isso mesmo considerando que esse quadro foi feito por alguém que comungava das ideias ali subjacentes. Nada me impede disso.

Quando dizemos que a arte nos humaniza, esse tipo de humanização envolve um trabalho muitas vezes árduo, muitas vezes incômodo. É fatal que caiamos na discussão a respeito dos trigger warnings, o que pode se metamorfosear numa discussão clínica: se eu tenho uma vítima de estupro diante de mim, é correto permitir que ela leia um romance que aborde o estupro? Veja que não falo daquele tipo de sensibilidade menor que muitos acabam ostentando, a sensibilidade calcada apenas no desconforto. O exemplo dado é maior. E me parece que a resposta, dependendo do caso clínico, é não, ainda mais considerando que obras de arte possuem um poder de imersão muito acentuado. Não vou me meter muito nessa história, mas acho que em algum estágio do tratamento dessa pessoa será salutar que ela encare uma cena assim num livro, por exemplo. Mas não vou me meter. O que há para ser dito, todavia, é que obras de arte nos fazem entrar em contato com realidades terríveis, com sentimentos e sensações que alargam nossa experiência de vida de maneira simplesmente incrível: basta que se imagine o salto temporal que dou partindo da glande de Christian Grey penetrando vaginas mil às pilhas de cadáveres carbonizados pelas labaredas de um dragão, e isso bastando-me uma simples troca de livros na estante. É maravilhoso. Mas esse tipo de salto, que aumenta nossa experiência, precisa, é claro, se fazer acompanhar de um raciocínio e de uma elucubração prévias e posteriores, do mesmo modo que, durante o processo da leitura, precisamos aprender a abrir mão de muitas coisas, não só convicções pessoas, crenças ou ideologias, mas, o que sinceramente me parece uma verdade, até mesmo de parte de nossa humanidade para que justamente consigamos imergir com mais força naquilo que lemos. É óbvio que o movimento posterior, de volta a nós mesmos, precisa se fazer acompanhar justamente dessa elucubração, dessa meditação para que a suspensão de espírito que fazemos não seja definitiva ou danosa.

Mas isto existe, é uma exigência. Mesmo que diante de obras feitas por pessoas que sabemos que em vida foram más, ou obras que só conseguimos enxergar como obras prontas a destilar um conteúdo ruim, eu ainda assim posso aprender com aquilo. A arte é um exercício da imaginação poderosíssimo, o que não quer dizer que ele não possua seus dispêndios. É muito simplista que nos escondamos por trás de censuras e regras e no fim das contas escapemos do contato direto com a Górgona, mas, caso realmente queiramos haurir todas as benesses que a literatura é capaz de nos oferecer, devemos estar prontos para encarar a maldade. Ela existe. Não se pode negá-la. Esconder-se não é uma opção.