Os poemas e a época.



Todo mundo pelo visto é muito perspicaz, ainda mais quando o assunto é falar dos poemas do presidente interino. Não sabia que tínhamos tantos leitores de poesia, tanta gente afiada, boa de serviço. Fico tocado, mas, de antemão sabendo que a maior parte de quem mexe com poesia também costuma ter a brilhante ideia de escrever de vez em quando, permitam-me declamar aquele ditadozinho que eu só não patenteei ainda por motivos de força maior: estar alguns degraus acima dos poetas ruins não quer dizer coisíssima nenhuma se você continua chafurdado num atoleiro de merda. Portanto, não adianta ficar escarnecendo demais. Você mesmo não é tão bom assim. Ficar tripudiando demais em cima do pobre coitado que só escrevia uns versinhos no avião porque não tinha um Game Boy Color e uns pokémons pra capturar acaba revelando, se quer saber, pobreza de espírito. Sua, no caso.

Afinal de contas, embora os poemas do presidente interino acabem servindo de catálogo de defeitos, algumas coisas devem ser pontuadas: a primeira delas, e a mais importante, é que alguns deles possuem a virtude de serem curtos e despojados de qualquer efeito especial que porventura venham a conspurcar (são ruins, portanto, mas deixam sequelas menores), coisa que seus poemas combativos e experimentais, por exemplo, não possuem; segundo porque, meio que ao contrário do que costumamos associar (um presidente, alguém ligado ao poder, um senhor de idade vestindo terno e gravata, bip! bip!, é igual a sonetos e oitavas), os poemas de Temer, como nota Antonio Vicente Pietroforte (aqui), estão relativamente sintonizados com a poesia contemporânea; e terceiro que essa sintonia, esporadicamente essa busca por poemas minimalistas e concisos, acaba fazendo com que Temer se aproxime por exemplo da poesia de Nixon, o que, considerando que eu mesmo já me meti a traduzir dois poeminhas dele, não deixa de ser interessante (do ponto de vista poético é como um acordo internacional).

O resto que vier a respeito do assunto é escarnecimento e exercício simplório de interpretação poética. Caso queira ler uma resenha eu julgo bem feita sobre o tal do Anônima intimidade, você pode ler essa daqui, de Carlos André Moreira. Não é porque estamos diante de um caso em que a mão do cinismo chega coça que nós vamos, por conseguinte, ser cínicos do começo ao fim. Aquele mantra que Susan Sontag certa vez proferiu continua sendo isso mesmo, um mantra: seja sério e jamais cínico, o que, por óbvio, não exclui ser engraçado. É nisso que acredito. Para todos os efeitos, a pessoa que abriu seu coração e publicou aqueles poemas ali, com um receio genuíno de que seus sentimentos sejam expostos em demasia (e o simples receio já mostra que estamos num estágio afetuoso da relação com a poesia ― além de sinalizar para uma certa engenhosidade no título, haja vista que a anônima intimidade é menos a do autor para com o leitor do que a do leitor para com o autor), não é o político frio, imperador das canetadas, mas o homem Michel Temer, aquela pessoa que arrota depois de beber um copão de Pepsi e deixa a tampa da privada levantada. Você pode ter mil e uma antipatias com a figura do dito cujo, e achar que ele faz pactos demoníacos daquele jeitinho. Mas se você vai falar do livro com uma pretensão crítica que seja, então ótimo, mas lembre-se: sem cinismo. Do mesmo jeitinho que você faria se estivesse resenhando o livro do colega ali do lado.

Mas esse tipo de pito eu sinceramente não sei nem porque estou dando. Gosto sempre de pressupor que as pessoas que me leem são pessoas que pelo menos se esforçam em manter os neurônios em funcionamento. Pode ser realmente divertido, e eu pressuponho que pra quem precise, sei lá, escrever um daqueles artigos enormes e boçais sobre a situação política no país, poder contar com um poeminha do livro do Temer é ótimo pra ilustrar o ponto defendido e fisgar o leitor. A poesia costuma sempre servir nessas horas. De instrumento. Como formalista caquético e parnasiano embalsamado que sou, óbvio que vejo esse tipo de coisa com desconfiança, talvez com um certo orgulho ferido, mas vá lá, divirta-se. Sei muito bem: a literatura não existe no éter. Você tem esse direito. Alguns jogam búzios na mesa e fazem careta quando enxergam um pentagrama (de algum jeito eles enxergam). Outros catam poemas de livro alheio e brincam de metaforizar a seção política do jornal. É normal. George Orwell disse que já até se acostumou com essa hermenêutica-escravos-de-Jó.





Todavia, ao olharmos para a linha do horizonte, lá onde a aurora dedirrósea dá uma retocada nas unhas, eis que entram galopantes e triunfantes os poemas. Os artistas que combatem o tal do golpe. Não podem ficar parados. Sabem que ninguém vai ler aquela merda, mas pelo menos tentam. Mostram que estão descontentes, que não vão aceitar esse tapa na cara. E mergulham de cabeça na tal da poesia panfletária.

Só de mencioná-la eu sei que alguns leitores mais puristas já capotaram no chão e estão em convulsão pura e simples. Deixe-os. Eles precisam se acostumar. Eu mesmo não tenho nada mal resolvido com a poesia panfletária. Disse que sou um parnasiano embalsamado e não mudo; mas também disse que a literatura não existe no éter e, portanto, das muitas formas de se ler uma obra de arte (pois, na prática, o que eu e os veneráveis senhores do asilo Formalista fazemos nada mais é que uma terraplanagem, algo que, na prática, todo bom leitor faz ― mas faz com um algo além), é normal que as pessoas tratem a tal da literatura de forma puramente documental. Por exemplo o que os historiadores fazem, na ausência de pedacinhos de flecha e roupas íntimas da civilização asteca. Normal: o objeto literário, como todo objeto artístico, comunga com uma intensidade peculiar da vida cultural de uma época, de tal modo que quando entramos em contato com esse objeto, nós vemos esse mesmo objeto entrar em funcionamento, algumas vezes como se estivesse novinho em folha. Logo, é um tipo de objeto excelente para a análise histórica. É respeitável que o seja, é admirável que o seja.

Mas a questão da poesia panfletária parece ir um pouco além. A obra de arte transcende seu tempo. Ela comunga com seu tempo, é certo, ela sempre carrega toda uma contextualidade e toda uma individualidade, lembranças, souvenirs de onde ela partira: esse daqui é papai, que estava passando tais e tais perrengues quando me escreveu, e esse daqui é o quintal de casa, onde brinquei e me refestelei. É certo. Mas ela também vai contra tudo isso e empreende o salto mortal. O problema alegado é que a tal da arte panfletária não faz isso. Ela se atém demais a seu tempo e perde, portanto, sua capacidade de transcendência. Logo, para o leitor do futuro ela seria um tipo de poesia presa demais às contextualidades de seu tempo, aquele tipo de poesia que necessitaria de uma frígida e caudalosa nota de rodapé pra explicar a graça ou a violência daquele texto. Sim... Mas será que isso nos leva com tanta facilidade à conclusão de que estamos diante de um poema ruim?

A poesia panfletária faz parte de um grupo maior de poemas que podemos chamar de poemas de ocasião: poemas que dependem do calor do momento em que foram escritos para que consigam ser compreendidos em sua totalidade, o que não exclui, claro, outras formas de compreensão e encanto que porventura adquiram, por exemplo o poema panfletário que é ressuscitado numa insurgência futura, mais ou menos o que muitos de nós fazemos com o cálice de Chico Buarque. Mas a meu ver nada necessariamente impede mesmo um poema panfletário de transcender seu tempo, como nada impede de que um poema panfletário ainda assim seja considerado inteligente. Ele pode tratar de um problema que até foi resolvido, ou que até já passou, mas o simples trato, se feito com jeito, se feito com engenho e arte, rasga os céus com uma mensagem, um ponto de luz à solta no espaço. Além do mais, não podemos ler poesia esperando apenas que o leitor se esforce um mínimo possível. Realmente pode ser pedir muito que o leitor tenha uma bagagem histórica específica para saborear aquilo ali na sua frente, mas essa exigência não é capaz de nos fazer chegar à conclusão de que necessariamente aquele poema ali é um poema ruim. Só por que ele de antemão pediu muito para o leitor? Os poemas de Eliot também o pedem, ora essa.

Além do mais, não podemos nos fiar muito no leitor futuro. O leitor futuro que responda por si próprio. Podemos ler os poemas de ocasião de nosso tempo ― poemas panfletários ou alguns tipos de poemas satíricos, por exemplo ― e ainda assim apreciarmos a inteligência e a engenhosidade com que se estruturam, já aproveitando, claro, que também vivemos aquela situação retratada, que comungamos dela. Se vai ser osso pro leitor de amanhã, não é problema nosso. Os leitores de hoje não são escravos dos de amanhã. A exigência central para todo poema panfletário e, na prática, para todo poema, seja lá que tipo de poema for (de amor, metafísico, idílico, erótico etc etc), é de que antes de tudo e acima de tudo seja poema, o que não quer dizer versos falando a respeito de joaninhas e um monte de rimas em "ão". Eu traduzo essa exigência em: seja inteligente, use-se da linguagem de forma engenhosa, de modo a criar um texto capaz de produzir mensagens com argúcia. Essa é minha exigência. O fato de que dependam de não sei que tipo de bagagem prévia para que sejam melhor apreciados, ou o fato de que tratem de política de um jeito nu e cru, tudo isso eu julgo como fugir do assunto quando o assunto é apreciar o poema ali na nossa frente.

Épocas de efervescência política, obviamente, são épocas de produção de poemas panfletários. A exigência absurda que muitas vezes se faz ao poema panfletário, e os julgamentos peremptórios e exagerados, pseudo-rígidos, bem se entenda, se dão porque o crítico muita vez não se deixa ler o poema com franqueza, abertura, diálogo: ele sufoca o poema com concepções prévias e não aceita, não aceita, não aceita que o poema possa misturar política de forma explícita, sem que a política se sublime num algo maior (aquela conversa pra boi dormir dos Temas Maiores da Literatura). Aí o que ocorre é simples: ele pega todo um tipo de poesia e joga na lata de lixo, sem mais nem menos. Mas acaba ignorando que os poemas panfletários, os poemas de ocasião de gente como Gregório de Matos, Maiakóvski, Brecht ou Mandelstam estão aí, palpitantes, estrelas solitárias de inteligência a nos mostrar que o poeta pode resistir a seu tempo e, pelo menos, passar aos pósteros a mensagem de que alguém no passado desenredou seu descontentamento. Pode parecer uma lição menor, e, no geral, para muitos de minha casta, ou seja, para muitos dos moradores do Residencial Torre de Marfim, um tipo de mensagem dessas, toda lambuzada de política e notícias da ordem do dia, só pode ser tratada com desdém. O que, conforme argumentei, não se sustenta muito. A boa poesia pode vir de tudo quanto é canto.





O número de poemas pincelados poderia se estender ao infinito. Mas como meu plano de saúde não cobre o tempo que eu passaria no meio da zona cancerígena dos poemas ruins, preferi brincar de ser conciso e citar, apenas, um muito ruim, um ruim e um mais ou menos. O fato de que eu não cite nenhum bom pode ser lido como uma comprovação de que, afinal de contas, poema panfletário e proselitista que seja bom não há; mas eu prefiro simplesmente dizer que, como no final das contas a poesia panfletária perde daquele cuidado poético específico em prol de uma mensagem bombástica (o mesmo problema dos arautos moralísticos, dos songamongas apaixonados e dos metafísicos insulsos) e, por que não pensar, acaba servindo de validação grupal pura e simples (a ideia de que se você externa os sentimentos da patota você ganha atenção do sexo oposto, no mínimo), então no geral, eu concordo, os resultados saem ruins e só uma pequena parcela se mostra boa de serviço, embora, claro, até aqui não haja nada de realmente novo no front uma vez que pra qualquer cumbuca poética em que você se meter a realidade será sempre a mesma: na maior parte dos casos os poemas serão ruins, uma pequeníssima parcela estando reservada para os bons.

O primeiro é isso daqui. Parece um rap muito mal feito. Pois o rap, ou qualquer outra forma de poesia oral, acaba calhando muito bem na situação da poesia panfletária pois assim você pode usar das vias corpóreas e vocais para que consiga dar ênfase na sua mensagem, o bom e velho deixar a coisa mais animada. Então é claro que ajuda. É o que todo político faz quando encontra um palanque no deserto. O problema é quando isso está com as letrinhas olhando pra você e você pras letrinhas. Aí sim você começa a perceber a maneira como o poeta, cavalgando versos livres, consegue criar enxertos apenas pra 1) rimar e 2) cutucar a onça com a vara curta (isto é, cri-ti-car a nossa amada e fabulosa so-ci-e-da-de):

               É tanto blábláblá e tititi
               Agora, inclusive, ficam discutindo quem diz mais mimimi
               Que eu me questiono daqui
               Se não é melhor fugir por aí caçando poesia
               Na natureza esguia que a noite proporciona
               Pegar carona no rabo de um cometa
               No riso frouxo que muitas vezes sufoquei para caber na maleta

O que incomoda na poesia panfletária não é a poesia panfletária em si, mas, na prática, defeitos que existem em qualquer tipo de poesia. O enxerto com funções meramente formais, que nos dá engulhos quando estamos falando de um árcade e seus Polifemos da vida, não muda absolutamente nada quando sentimos a maneira frouxa com que essa rima entre "tititi" e "mimimi" surge. A única coisa que eu vejo de genuíno e digno de interesse, digno de levantar um pouquinho o ritmo do texto, é quando o poeta rima "poesia" (cujo I já estabelece uma conexão com a rima anterior) com "esguia" na metade do verso anterior e "proporciona" com "carona", também na metade do seguinte, e, anteriormente, de forma parcial, com "questiono". É um bordado de rimas que não deixa de ter seu interesse, o que até contribui para um tom cantável ao texto. O problema é quando esse ritmo serve pra dar vazão, apenas, a coisas como essa:

               Um beijo pro Zaratustra
               Digo, pro LUstra
               Que brilha na minha cara
               Que dá nome a minha arara vermelho sangue
               Ah, bendita arara!

Sim, nós já percebemos que o poeta quer realmente fazer com que nós, leitores, durmamos com aquele rosto execrável do Bolsonaro na cabeça. Mas, para cumprir tão nobre missão de conscientização alheia, ele tinha que arrancar o pobre do Nietzsche da cova, pelos cabelos, aos tapas, aos berros, pra que a rima pudesse bater ponto. Nexo? Nenhum, é claro. Depois, a imagem do pau de arara, terribilíssima, que se transforma numa imagem literal da arara, animal, cor... Tcharã. Vermelho sangue. Já deu pra perceber: o poeta vai ziguezagueando de um lado pro outro em busca de rimas e volteios que consigam encaixar as indiretas que ele quer dar. Provavelmente ele se julga muito esperto nessa coisa de deixar o dito pelo não dito, mas ele o faz de forma tão canhestra (acho que com um temor de que seu leitor não dê uma de Capitão América e capte a referência), e com uma gratuidade tão grande (sempre com passadas largas para resultados tão mínimos), que o resultado só pode ser dos piores. Um típico poema desses que se você ler ali entre os seus, numa reunião de Coletivo, todos baterão palmas e te acharão o máximo, e, como eu disse, o sexo oposto vai ficar fora de órbita querendo que o milagre da vida gere guerrilheiros com seus genes. As pessoinhas da direita fazem a tal da dança do impeachment, e nós achamos o máximo rir disso ou daquelas tias que escrevem cartazes lamentando o fato de que os militares não fuzilaram todo mundo. É muita vergonha alheia e burrice concentradas ― num nível mais compacto que um ônibus lotado às seis da tarde ou o buraquinho do Big Bang. Mas, como tudo nesse mundo político são conveniências, basta um estalar de dedos que estaremos bem aqui, entre nossos camaradas, rimando "humus" com "Cumulus Mediocris" e aplicando a mesma seletividade para notícias de mesmo teor, só que agora envolvendo os cupinchas do lado de lá (antes nós ríamos das madames batendo panelas; hoje clicamos nos botõezinhos na tela do smartphone e vomitamos).

O poema ruim é esse daqui. Um recorte mais preciso, um ritmo mais vivo. E com momentos que valem a pena serem mencionados, como os versos "Um pau de fogo rege a memória", "O pulso forte, a fera fêmea incisa" e "Pra dar ao golpe um galope intenso", ou como a expressão "não é um filho da permuta" ― cuja rima com "desfruta", no verso anterior, mostra um domínio rímico um tiquinho mais apurado (observe também "usa" e "reclusa", "intenso" e "por extenso"). Se você puder imaginar o que seria se o autor do primeiro poema precisasse veicular uma estrofe como:

               Feras a solta impunham um cajado
               Juntando ovelhas para um precipício
               Um ser isento se mantém calado.
               Pagando caro o próprio sacrifício.

então creio que você consegue dimensionar a razão de estarmos diante de uma melhoria. E não falo nem tanto pela ideia das feras que guiam ovelhas, uma imagem um tanto quanto gasta, mas pelo fato de que o ser isento se mantém calado e paga caro o próprio sacrifício. Aquilo que no debate político nós chamamos de isentões (e é bem provável que, do ponto de vista do poema, eu esteja nessa cumbuca). Trata-se de uma forma de criar a imagem eu não digo genial e acho que se disser notável será com uma pitada de condescendência; mas, pelo menos, é uma maneira tragável, e o fato de que o poema todo seja tragável, o fato de que ele todo apresente uma certa serenidade e consiga pelo menos transmitir um brilho que seja no meio de toda essa cena noturna e apocalíptica permeada de clichês, bem, isso já é alguma coisa. Pois esse brilho seria em específico o fato de que o poema adquire matizes metafóricos, simbólicos. Ele não chega direto ao tema tratado. Muitos poemas panfletários são assim ― eles não chegam ao estágio direto a escarrar ali na cara da outra pessoa, preferindo, antes, dar uma dissimulada básica. Normal. A pessoa escarnecida pode muito bem ser um daqueles coronéis que vão afixar uma miríade de punhais nas suas costas caso você faça isso.

Quando falo de clichês e da ideia de se alçar à condição de símbolo, é mais ou menos disso que falo:

               Chega à cidade mais de mil soldados
               Julgando o povo que abraça a luta.
               Quem os comanda tem sede de sangue
               Quem os resiste tem a força justa.

Ignore o erro de português no início. O poema poderia ser melhor pontuado, é verdade, em especial quanto às vírgulas no final dos versos (ou você coloca essa pontuação, ou você a suprime ou você tira algum efeito desse samba). Mas não é o principal problema. O clichê se localiza logo de cara com os soldados serem mais de mil e com o fato de que seu comandante tem sede de sangue, bem como que os resistente possuem força justa. Uma cena dessas nós já cansamos de ver pintada por aí, e com esses matizes épicos de sempre ― nem se fala! É como se o poeta romanceasse a coisa para que ela chegasse àquele nível de servir de estandarte ou de consolidação de uma consciência coletiva (ou de classe, caso prefira o jargão). Aquela espécie de zona de inteligência, aquela zona de elucubração que um bom poema panfletário a meu ver deve possuir, ou seja, aquela zona, criada graças ao trabalho inteligente do poema, que o poema consegue criar graças à sua inclusão num contexto específico, fazendo com que o leitor elucubre a respeito da situação, criando um espaço em branco para o diálogo e para o raciocínio em tempos de polaridade política ou simplesmente de acirramento político (onde a própria ideia de política, como resolução pacífica de conflitos, ameaça ceder lugar para o quebra pau); isso, essa espécie de mistério e de água-furtada no edifício público, e que é um dos grandes benefícios de um bom poema político ou panfletário, não está presente neste segundo poema e nem, muito menos, no primeiro. Há uma pintura romanceada e com um domínio poético mínimo ― o mínimo do mínimo. Mas só.

O terceiro e último exemplo, todavia, já é de um poeta exímio: aqui. É óbvio que com um presidente interino com esse nome, os poetas e os comediantes vão tripudiar em cima mesmo. É automático. A primeira estrofe possui um jogo de palavras que consegue sair dessa raiz e, de maneira surpreendente, cair como uma luva (eu diria um refrigério) na situação toda:

               ‘Tâmer’ é uma palavra
               que evoca coisa melosa
               ao árabe que faz sua prosa
               daquilo que árabe lavra.
               A tamareira bem alta
               um doce fruto provém.
               Fruto que estraga, porém,
               se guardado na Câmara.
               Tão logo amarga-se a tâmara,
               amarga-se a boca também.

O sabor barroco ou cabralino do poema se encaixa bem, pois nos aclimata às surpresas que o poema é capaz de proporcionar ― sem contar que essa ponte histórica (nós daqui dando oi pros barrocos do lado de lá) é sempre uma forma consistente de ler o cenário político, de modo que ela, incidindo num plano estético, mantém em princípio a mesma força, a mesma pertinência. A correspondência com a fruta seguia apenas indo, sem nada de mais. Rimas como entre "palavra" e "lavra" e "melosa" e "prosa" não nos extasiam. Esse preâmbulo serve apenas pra que a correspondência fônica com o nome do Temer seja estabelecida. Um exercício etimológico que não quer nada com nada, mas que, pelo simples fato de sabermos que estamos diante de um poema político (primeiro porque ele foi anunciado como um graças ao título e segundo pela nota inicial), já nos deixa em estado de espera. Então o poeta nos diz da tamareira alta. Sim, correto. Mas então: "Fruto que estraga, porém, / se guardado na Câmara." As coisas melhoraram. Porque realmente, se guardarmos na câmara, o fruto estraga. Acho até que o poeta nem precisava ter grafado com maiúscula. Ele conseguiu uma estocada. Mas: "Tão logo amarga-se a tâmara, / amarga-se a boca também." Excelente. Não só pela rima, que surpreendente, mas pelo jogo, pela maneira como o amargor da tâmara é passado para a boca, e a boca, bem sabemos, num contexto político é uma das partes do corpo centrais (se brincar a parte central).

Nem tudo são flores. O início é ótimo, e o poeta poderia ter acabado o poema por aí mesmo. Mas não. Oh não. Ele precisa continuar. E aí se sai, logo no início da segunda estrofe, com:

               Temer é um apelido
               que evoca coisa malsã;
               sua amizade, que é vã,
               o fez um bom inimigo.

Argh. A traição do presidente interino, que apunhalou a ex-presidenta e usurpou o seu cargo, dando o famigerado golpe. A rima aqui é pobríssima: na verdade, todo o terceiro verso da segunda estrofe é pobre. Ficamos com a sensação de enxerto puro e simples. É como se o poeta quisesse contextualizar ainda mais, quisesse deixar ainda mais clara sua mensagem, talvez desconfiando que o que ele havia conseguido até então estivesse incisivo o bastante. O resultado é essa alegorização da política no poema, que ganha um sabor arcaico graças à forma da estrofe, a uma certa métrica (um tanto quanto mal feita, vamos convir) e à ideia de um interlocutor (bastando que se lembre de Critilo e Doroteu nas Cartas chilenas). Mas, tendo em vista a maneira óbvia e praticamente isenta de inteligência com que o restante se veicula, o que era pra ser um poema com potencial para bom poema panfletário, se rebaixa a versos como:

               O traidor – que é esperto –
               é bem ruim ter por perto,
               mas é pior se distante.

"é bem ruim ter por perto". Meu Deus do céu, quantos anos tem o autor desse verso? Isso chega a ser infantil. Sem nem contar isso:

               Teme mais, sobretudo,
               o lobo na pele do cordeiro:
               quem mais se faz verdadeiro
               é que engana, é astuto.

Enxerto, enxerto, enxerto. Pelo menos o poema do outro apresentava um contra-ponto de alguém que, isento, pagava caro o preço do próprio sacrifício.





Chega. Não me alongo mais. Ainda estamos na espera de um poema panfletário que faça jus à importância do momento, seja ele pintado com tintas apocalípticas, seja com tintas alvissareiras. Não importa. De um modo geral a esquerda parece ter lançado mão de forma mais intensa dos instrumentos artísticos, o que talvez seja uma decorrência de que a classe artística (pelo menos é assim que percebo) é predominantemente de esquerda. A direita continua com essa bobagem dela de ficar só na base dos carros de som, o que é uma pena, pois eu adoraria ver um poema satírico daqueles bem arretados encontrando rimas boas para "impeachment" e para "Dilma" (e pra provar que eu quero mesmo ver algo do tipo, lá vai a dica: vítima e filma, de "filmar"). O resto é essa beleza de debate político que pondo a cabeça pra fora qualquer um percebe. Ou, como diz o amigão da vizinhança, Hamlet: silence.