"Os anéis de Saturno", W. G. Sebald.



Como um fantasma. Póstuma. Exumada. Mas atenção: sem que nos refiramos a múmias usando tênis da Adidas. Artefatos mais exóticos: livros, literatura. Consegue imaginar? Digo: consegue imaginar um livro que faça jus a esses adjetivos?

Não me refiro a histórias de zumbis escritas em prosa putrefata nem aos vermes que há 135 anos roem as frias carnes de Brás Cubas. O narrador de Machado, aliás, está um tanto quanto vivo para um defunto: primeiro porque o livro todo é reminiscência e segundo porque ele mergulha impiedosamente todas as coisas a seu redor (pessoas, borboletas, capítulos) num cházinho de ironia sulfúrica. Nada disso parece compatível com aquilo que causa desmaios se avistado no fim de um corredor de tábuas gastas, segundos antes de apenas nos atravessar.

Geoff Dyer (esse cara tem um livro muito bom sobre jazz), num ensaio de 2003, caracteriza assim a prosa do escritor alemão W. G. Sebald (1944 - 2001). Desconheço uma maneira mais precisa de tratar do assunto do que essa, com exceção, claro, de passagens do próprio Sebald que, graças a sua solenidade, dão a impressão de se dissolverem no céu de nuvens carregadas da metáfora. Quem bisbilhota seus livros numa livraria ― em especial o quarteto memorialístico (Vertigem, Os Emigrantes, Austerlitz e Os Anéis de Saturno) ― pra começo de conversa não sabe se devolve o livro pra prateleira de ficção ou se ajuda o lojista colocando na de não-ficção, visto que, na melhor das hipóteses, eles seriam uma espécie de ficção em que o narrador adora escapar pela tangente e divagar um bocado. Mas daí vêm as transições entre uma meditação e outra, que, embora suaves, não disfarçam muito sua radicalidade e mesmo um certo artificialismo, no sentido de que você estava acompanhando o fio da meada para um lado e então, quando menos espera, o livro te encaminhou para outro. E, cereja do bolo, as imagens sem qualquer legenda ("5.7: uma praia deserta") que não seu próprio surgimento mais ou menos orgânico no meio dos parágrafos (em Austerlitz até a primeira nota de rodapé se faz acompanhar de uma imagem). E, desses, que muitas vezes se esquecem da hora de cessar, a prosa altamente estilizada, a erudição, a melancolia.

É isso mesmo. Como um fantasma. Póstuma. Exumada. Quero acreditar que, me limitando apenas a Os Anéis de Saturno, livro até fácil de ser encontrado (se eu o achei num sebo, imagine só o que não dá pra achar na tal da internet!), vou conseguir explicar melhor no que consistiria essa fantasmagoria na sua escrita, além, claro, de cumprir o único papel que realmente interessa (papel milenar, portanto) à crítica: convencer os outros a comprar coisas.

O narrador de Os Anéis de Saturno gosta de viajar. O resumo do livro, com todos os seus spoilers atarraxados, é esse. Pois mire e veja que, embora o narrador nos diga que começou perambulando pelo condado de Suffolk antes de se internar num hospital em Norwich e, aí, redigir o livro que temos à frente; embora ele nos tenha dito isso, na prática suas andanças cobrem uma fatia gorda da Europa, ainda mais se considerarmos que elas não são lineares (uma viagem pode ou não ter sucedido a outra) e que, como existem referências a épocas, pessoas e lugares distantes pululando em cada trecho, então a sensação que temos é a de estarmos a bordo de uma embarcação rápida demais para que nos preocupemos em marcar um check-in nas postagens de facebook.

Sendo assim, de lá pra cá, de cá pra lá: e só. O resto é um amontoado de reminiscências, personagens evanescentes, quinquilharias e episódios históricos. Difícil não se lembrar da figura do bricoleur de Lévi-Strauss ou do projeto das Passagens de Walter Benjamin. Internado no hospital de Norwich, para se ter uma ideia, o narrador se lembra que aí estava, supostamente, guardado o crânio do polímata inglês Thomas Browne, no que se segue um relato a respeito de sua vida que é interrompido por um comentário de grande argúcia sobre o quadro A lição de anatomia de Rembrandt, voltando, depois, para Browne, sua teoria sobre o quincunce como uma estrutura (em forma de pontos que se conectam e criam um tecido permeado de losangos) antevista em toda parte ("na matéria viva e na morta, em certas formas de cristal, em estrelas-do-mar e ouriços-do-mar, nas vértebras dos mamíferos, na espinha dorsal de aves e peixes, na pele de diversas espécies de cobras, nas pegadas de quadrúpedes que se movem em zigue-zague, nas configurações dos corpos de lagartas, borboletas, bichos-da-seda e mariposas, na raiz da samambaia aquática, na casca das sementes de girassol e pinheiro manso, no interior de brotos jovens dos carvalhos ou no caule da cavalinha e nas obras de arte do homem, nas pirâmides do Egito e no mausoléu de Augusto, bem como no jardim do rei Salomão, plantado em trançado matemático com romãzeiras e lírios brancos." ― uso a tradução de José Marcos Macedo para a edição da Cia das Letras); e volta para o quincunce, eu dizia (o quincunce parece servir como uma estrutura subjacente à maneira com que Sebald dispõe o livro), e segue para uma obra de Browne chamada de Pseudodoxia Epidemica, listagem de seres reais e imaginários, para Borges e, por fim, para reflexões sobre a história dos indivíduos e da sociedade como uma órbita: "Em cada nova forma já reside a sombra da destruição."

Primeiro capítulo. O número de relatos será muito maior que esse, indo dos escritores vitorianos Fitzgerald e Swinburne a histórias sobre cardumes de arenques e uma mariposa chamada Bombys mori. Este simples amontoado de objetos sempre saindo da órbita da experiência imediata do narrador nos deixa como que à deriva. A maior parte daquilo que nos é relatado é de um passado remoto e obscuro, algo que nós dificilmente ouviríamos dizer. Pois desse interesse de Sebald para com miudezas históricas, curiosidades sortidas, e também para com a fotografia (você acha isso no YouTube mesmo: fotografia, para Sebald, é registro efêmero), uma passagem do romance Austerlitz elucida tudo: 

a escuridão não se dissipa, mas se adensa enquanto penso como é pouco o que logramos conservar na memória, como tudo cai constantemente no esquecimento com cada vida que se extingue, como o mundo por assim dizer se esvazia por si mesmo, na medida em que as histórias ligadas a inúmeros lugares e objetos por si sós incapazes de recordação não são ouvidas, não são anotadas nem transmitidas por ninguém

Mesmo que o local visitado outrora possuísse toda uma pompa, como por exemplo o palácio em Somerleyton que o narrador visita no segundo capítulo ("Salões alternavam com jardins de inverno, saguões arejados com varandas."), hoje esse lugar está praticamente irreconhecível: "As cortinas de veludo e as persianas bordô estão desbotadas, os móveis estofados cedem, as escadarias e os corredores pelos quais se é conduzido estão repletos de tralhas inúteis já fora de circulação." Um pouco depois: "Tampouco podemos dizer de pronto em que década ou século estamos, pois muitas eras estão sobrepostas ali e coexistem." (Eu disse, não disse?: dissolver-se no céu de nuvens carregadas da metáfora...)

O que é elogiável em passagens assim não é apenas o olhar altamente apurado de Sebald (enquanto na primeira frase temos aposentos que indicam ar fresco entrando, por exemplo no caso dos saguões alternados com as varandas, na segunda temos móveis que cedem ― e podemos sentir a poeira se levantando ― e escadarias e corredores apinhados de coisas que atravancam o caminho). Nem isso e nem a prosa cristalina e quase que isenta de ironia, como muito bem nota Susan Sontag. O que o narrador observa não é uma espécie de ironia do destino. É, antes, a decadência da realidade com a máxima crueza e fluência que lhe cabe relatar. Pois se é pra descrever, (suspiro) descrevamos até as minúcias e com uma paleta de cores de fazer inveja a qualquer caixa de lápis dos sonhos. Afinal de contas, não é porque estamos imersos num livro de clima espectral que vamos cair na esparrela de desligar as luzes o tempo inteiro. Sinta o peso distinto de uma cortina de veludo e de uma persiana bordô desgastadas (e não de uma simples cortina e uma simples persiana) e, depois, apenas com o olfato (poucos escritores, aliás, são capazes de nos fazer dilatar as narinas), sinta o aroma que a simples menção a quatro aposentos intercalados (salões, jardins de inverno, saguões, varandas) é capaz de proporcionar. Isso é só um trecho. Só um.

Uma página depois, ainda em Somerleyton, o narrador encontra, num aviário, uma codorna chinesa "― evidentemente em estado de demência ― correndo de lá para cá ao longo da grade lateral da gaiola e sacudindo a cabeça toda vez que estava prestes a dar meia-volta, como se não compreendesse como fora parar nessa situação deprimente." E então, à maneira de uma rima num soneto de Petrarca, surge na página impressa a foto de um passarinho no chão, diante de uma grade. Pungente. Pungente, pungente. A fotografia não está aí apenas pra que seja resgatada do esquecimento; na verdade, assim que nos vemos diante daquela codorna chinesa, nós parece que conseguimos sentir com ainda mais vivacidade a cena descrita, e logo que caímos na bobeira de piscar os olhos ― a codorna sacode a cabeça antes de dar meia-volta.

Quando ocorre do narrador encontrar com alguém de carne e osso, ou eles se cruzam e o resto é silêncio, por exemplo a jovem assustada em Lowesoft cuja vista "estava sempre no chão ou me atravessava como se eu não existisse", ou então a pessoa até possui uma proximidade com o narrador (os dois até conversam, sabe?, você até sente a narrativa num leve sacolejo mudar da terceira pra primeira pessoa), mas, de algum modo, a brisa das frases ou a aquarela de imagens faz com que ela se dissipe: por exemplo o poeta, crítico e tradutor Michael Hamburger que o narrador visita lá no capítulo sétimo, ocorrendo-lhe, de repente, que as coisas que Michael Hamburguer guardava em casa ("Os cestos de vime cheios de minúsculos gravetos para o fogo da lareira, as polidas pedras brancas e cinza-claras" etc etc: observe, só aqui, sem nem terminar de citar a frase toda, o detalhe magnífico dos gravetos nos cestos e a delicadeza de colorir as pedras em branco e cinza-claro) "haviam sobrevivido a mim e que Michael me conduzia por uma casa na qual eu próprio morara muito tempo antes"; ou, num segundo exemplo, quando o narrador vai até os Ashbury e se encontra com Catherine, que, como a jovem em Lowesoft, transpassa o narrador com o olhar e demonstra a todo instante uma incômoda apatia:

Depois que expliquei por que estava ali, levou um bom tempo para que ela despertasse de seu espanto e desse um passo de lado, para, com um gesto quase imperceptível de sua mão esquerda, deixar-me entrar e tomar assento numa poltrona do saguão. Quando então se afastou sem palavra pelas lajes de pedra, notei que estava descalça.

In the mind's eye, Horatio. A laje de pedra, os pés descalços. Sem palavra. Como um fantasma. Póstuma. Exumada. Logo que o narrador se encontra sozinho, o mais que lhe caiba sendo tão somente descrever o que está à sua volta, a sensação de melancolia não se afasta um milímetro que seja. Ao visitar Amsterdan no quarto capítulo, em certa passagem o narrador se vê sozinho no quarto contemplando, da janela, uma tempestade que caía e um casal de patos "no abrigo de galhos pendentes de um chorão". Ele diz: "Por uma fração de segundo, essa imagem emergiu das trevas com tal clareza que ainda agora imagino ver cada folha do chorão, as nuanças mais sutis na plumagem de ambas as aves e até mesmo os orifícios dos poros em sua pálpebra cerrada."

A literatura educando o olhar. Dizer do mundo visto por Sebald evocando o Drummond dos homens partidos é muito pouco: Sebald se vê diante de um mundo que presenciou e presencia horrores inomináveis, e, no entanto, um instante, um clarão de vida e de nobreza nos permite antever que algo muito além disso daqui é possível. Traduzindo numa imitação sebaldiana de quinta: a perícia narrativa, portanto, a técnica de um exímio artista faz com que toda essa concretude nas cenas, esse trabalho flaubertiano de com palavras ordenar que a realidade palpite ainda que permeada de escombros, ainda que sob a égide da difícil viagem no tempo e do difícil movimento do olhar; toda essa concretude, especialmente vista quando o autor enumera substantivos em frases pastoreadas pelo tempo pretérito (como na relação de correspondências com o quincunce antes citada), aflora e toda aquela pletora de cores, formatos e coisas se esmigalha e gira ao redor de um planeta solitário. Os anéis de Saturno.