"Metamorfoses", Ovídio, tradução de Bocage e comentários de Rafael Falcón.


Tem umas coisas novas no meio literário brasileiro, não sei se perceberam. E, o que é interessante, coisas novas sobre coisas velhas. Porque a tradução de Bocage é velha; já cansou de cabriolar nas várzeas do domínio público. Mas veja que se trata de relançá-la não mais à maneira com que a editora Hedra o fizera em 2007. Tem algo a mais em jogo. O livro sai pela mesma editora que publicou o Compêndio de Teologia de São Tomás de Aquino e o Proslógio de Santo Anselmo de Cantuária. Mais do que uma edição de bolso de um clássico, a edição publicada pela editora Concreta possui um cunho eminentemente didático e edificante. Busca ser um desses livros que, ali de tardezinha, depois das crianças terminarem o dever de casa e depois da novela do Candinho, faça com que a família se reúna e discuta um clássico.

Pelo menos é isso o que o comentador, Rafael Falcón, diz de forma explícita em sua introdução: é um livro destinados a pessoas curiosas, pessoas como eu e você, que não têm o famigerado canudo de papel. E, além destes curiosos, é um livro também dedicado a crianças, no que o comentador chega, em determinada passagem, a defender que o livro seja estudado pelos pimpolhos até mesmo depois da alfabetização:

Mais uma vez, chamo a atenção para o estatuto clássico destes textos. Não deve a criança "lê-los", e sim estudá-los; não devem os pais obrigá-la a ler mais que uns poucos versos ― o número exato depende, naturalmente, do treinamento literário que ela já tenha a essa altura ― e sempre com profundidade. Pode-se evitar, a princípio, a leitura propriamente literária, ignorando os comentários sobre estilo e estrutura, limitando-se talvez à simples gramática e ao vocabulário.

Isto como uma forma de não empurrar pras as crianças "as últimas bobagens do mercado infanto-juvenil", ou "fazê-las dançar funk" (sim, isso está no livro: observem o desespero de Falcón em defender seu ponto de vista) "e restringir sua imaginação a politicagens prosaicas como distribuição de lixo, racismo e não sei que outras preocupações de vereadores com as quais se violentam as criancinhas hoje." Um tanto quanto dramático, não? (Um pouco antes, o autor diz de forma categórica: "não existe mais educação no Brasil.") Tenho lá minhas dúvidas se esse tipo de utopia (pois trato a proposta educacional de Falcón como isso mesmo: utopia) é exequível, ainda mais tendo em vista que no ramo infanto-juvenil nem tudo é lixo ― e nem muito menos precisamos ficar pintando a realidade com cores que nos convenham. Seria de fato ótimo se pudéssemos imaginar crianças sendo educadas para apreciar passagens como:

          Disse, e como serpentes eis que se alonga,
          Eis na cútis nascer vê dura escama,
          Cerúleas nódoas variar-lhe o corpo:
          Na terra cai de peitos: manso, e manso
          Os membros se confundem, que o sustinham,
          E em buliçosa cauda se afeiçoam.

Ou seja, que a criança possa fazer cara feia diante do choque de tônicas em "nascer vê dura" ao mesmo tempo em que elogie a repetição de "manso" ou a bela aliteração em M e em S do antepenúltimo verso em diante.

Mas será mesmo que uma criança é capaz disso? Parto do princípio que a leitura de uma obra de arte começa com esse tipo de apreciação, e, mesmo que você no final das contas trate o poema ali na sua frente como um biscoito da sorte ― "o que importa é a mensagem por trás" & derivados ―, pelo menos essa estadia temporária no reino encantado da apreciação artística a pessoinha deverá fazer. Pois bem: será mesmo que é bom que uma criança entre em contato, logo após sua alfabetização, com termos cascudos como "cerúleas", "nódoas", "buliçosa"? É bom repetir: será mesmo que temos uma literatura infanto-juvenil tão ruim assim para que a única solução seja lançar as crianças direto nesse tipo de literatura que, querendo ou não, apresenta uma complexidade terminológica e sintática considerável?

Gente, eu não sei não, hein. A ideia, eu repito, fica parecendo uma verdadeira utopia, em especial nessa coisa de levar de forma tão literal o que uma educação clássica infantil poderia nos proporcionar ― isto é, entender por uma educação clássica o contato das crianças diretamente com textos clássicos. E vejam que não vou nem entrar exatamente no mérito do que entendemos por clássico ― no que poderíamos chegar sem problema algum a livros infantis que também adquirem esse status ―, mas no dispêndio que isso não seria capaz de acarretar. Podemos concordar sem muitos problemas que as Metamorfoses representam, no mínimo, um útil ponto de apoio para entendimento da mitologia antiga, e que essa mitologia antiga, é claro, lançou fortes raízes em nossa literatura (ponto para Falcón, portanto); mas daí a fazer com que a criança seja educada, logo após sua alfabetização, entrando em contato com um texto que possui um grau de elaboração elevado... bem, isso é um exagero notório e nem mesmo me parece uma tática muito inteligente, pois, se o objetivo for incutir uma educação clássica na criança, então seria melhor que ao invés dela entrar em contato com uma tradução de um clássico da literatura romana ― isto é, com um texto em português, língua que a criança ainda está aprendendo a dominar, de dificuldade elevada ―, que ela aprendesse logo latim ou grego (Rafael Falcón possui, aliás, um curso de latim bastante respeitável), pra que, quando estivesse lá pras bandas de sua adolescência, ou juventude ou mesmo idade adulta, pudesse ler a obra direto no original ― com a diferença de que um percurso deste respeitaria a capacidade de aprendizado da criança e seria, ouso dizer, muito mais produtivo. E veja que com isso eu não faço pouco caso da capacidade de aprender dos nossos pimpolhos; na verdade, ponho isso em grau de equivalência com a situação de estar aprendendo francês (lá naquele estágio em que aprendemos a diferença de pronúncia entre vous appelez e nous appelent) e ver-se de cara diante da Phèdre, de Racine. Pode funcionar? Pode. Tenho capacidade? Claro, não sou nenhum bobo. Mas seria um dispêndio enorme, seria uma confusão, um atropelo sem necessidade.

O propósito do livro, todavia, não é só o de incidir sobre a escolaridade primária. Ele também empreende uma crítica à maneira com que o conhecimento acadêmico tem sido produzido, e à forma como a produção acadêmica falha em se comunicar com o grande público. Porque, de fato, se considerarmos o tripé de toda universidade ― ensino, pesquisa e extensão ―, nós sempre ficamos com a impressão de que a tal da extensão é maltratada até não poder mais (afinal de contas, extensão é o quê, hein? É imprimir uns panfletos e colar em todo vidro dando sopa ― ou organizar um evento e convidar todos os meus amigos de facebook?). Mas, de novo, acho que Falcón exagera muito. A edição da Hedra, por exemplo, contava com um utilíssimo e totalmente acessível prefácio de João Angelo Oliva Neto. E, bem, João Angelo Oliva Neto é um acadêmico. E a edição da Hedra foi uma edição de grande circulação. E, a julgar por seu preço e por seu formato (de bolso), uma edição que pretendia cair na mão das pessoas.

Claro que a existência da edição da Hedra não comprova estarmos no melhor dos mundos para a universidade; embora eu não seja um acadêmico de Letras, tenho uma noção até razoável do que está acontecendo pros muros de lá, em especial a julgar pelo depoimento de não poucos professores, sempre muito críticos do estágio em que os estudos se encontram (gente como Paulo Franchetti ou Alcir Pécora, por exemplo). Ou seja: João Angelo Oliva Neto existe, mas ele é uma exceção. Pois, embora saibamos que a linguagem acadêmica é uma linguagem especializada, isso não a permite cair em obscuridades gratuitas. Do mesmo modo, exageros teóricos provindos de passagens teóricas mal escritas e tendenciosas (Falcón chega a citar a tese de que Ovídio seria um poeta pós-moderno ― uma tese que consigo imaginar mais ou menos como funciona, mas, como Falcón infelizmente não cita alguns de seus autores ou onde encontrarmos sua defesa ― logo mais volto a este ponto ―, fico apenas no acho-que-sei-do-que-ele-está-falando) levam a um jogo de farpas que, em mentes menos preparadas, se transforma facilmente na defesa de absurdidades vazias.

Claro, claro. Mas vejam: a pergunta continua sentada e saboreando um suco de citações: até que ponto o quadro pintado não é um exagero e não possui como único propósito o de ser um pano de fundo útil?

Do mesmo modo, para voltar ao que levantei no parêntesis anterior, as críticas que Rafael Falcón faz a leituras distintas e correntes das Metamorfoses são leituras que evidenciam um tipo de construção textual meio capcioso. É que, embora Rafael Falcón se refira às maneiras com que Ovídio é lido hoje, ele sempre se refere a tais críticos da forma mais abstrata possível, sem mencionar um nome, uma obra, nada. Isso nos impede de entender, de pronto, o real argumento desse tal acadêmico, de modo que o quadro dos estudos ovidianos que recebemos é um quadro com base apenas no que Rafael Falcón tem a nos informar ― é como se ele dissesse do que ocorre lá fora, mas, como não temos estas indicações precisadas, ficamos sem poder saber se é assim mesmo ou não. Uma estratégia retórica meio gasta, é claro, essa de pintar o cenário lá fora como uma catástrofe, visto que assim você aumenta a importância de seu livro por tabela, podendo, até mesmo, adotar um discurso humilde, como é o que Rafael Falcón acaba fazendo em especial nas partes finais de sua introdução.

Até aqui a impressão que fica do livro não parece ser das melhores. Mas não é bem por aí. Comentei de passagem alguns exageros da introdução, ousaria até mesmo dizer cacoetes típicos do debate intelectual em que nos encontramos (isso de proclamar o lado oposto como uma waste land), mas meus comentários não chegam exatamente a ferir o escopo principal da obra. Rafael Falcón parece ser um cara meio antiquado, e digo isso não no sentido pejorativo do termo; digo um cara antiquado pela defesa que faz (por vezes literal, como vimos) de uma educação clássica como uma educação rica de valores ― o que é algo sem dúvidas desejável, mesmo porque a obra clássica, como é lida ao longo das gerações, sedimenta valores consigo ― ou então quando, a respeito do como aproveitarmos ao máximo a leitura de um poema, diz:

é preciso saber: 1) qual é seu objetivo; 2) quais são as convenções em que se apóia; 3) que vícios ele tem, para os evitarmos, e quais virtudes, para que as imitemos.

Ou seja: o método a princípio me pareceu esquisito, coisa com um odor meio século XVIII (quem hoje em dia fala de coisas como vícios ou imitação de virtudes?), mas querem saber?, o remelexo é bom, em especial por destacar a necessidade de entendermos o objetivo do texto. Isso é importantíssimo. Então legal. Quem se importa com isso de ser antiquado ou não? A aptidão para o propósito é só o que importa. Pois vejamos.

Disse que o objetivo é criar uma obra que sirva de acompanhamento à obra de Ovídio traduzida por Bocage. Algo na esteira do que Caetano Galindo fez recentemente com sua passagem guiada pelo Ulysses de Joyce ― dadas as proporções, claro, de que a seleta das Metamorfoses traduzida por Bocage cabe num livro bilíngue juntinho com os comentários de Falcón. Pois bem. Era isso o que o livro queria? Tenho um spoiler pra dar, então: ele consegue. Se você encontra uma referência mitológica que não captou, por exemplo Prócris, irá encontrar:

a irmã de Oritia teve uma vida cheia de ciúmes e seduções, que ressaltam sua beleza e, por outro lado, seu amor pelo marido, Céfalo.

E se leres um verso como:

          Do rei com ela ao tálamo se encosta,

Lerás:

          "com ela, encosta-se ao tálamo do rei".

Ó leitor, tudo tintim por tintim. Um exemplo mais amplo de como o comentador traz tudo quase que mastigado pra nós é ali no episódio sobre a gruta da inveja:

A inveja vive numa gruta, primeiro porque se esconde e nunca se confessa como quem é. Ela se baseia na combinação única entre o sentimento profundo de inferioridade e um impulso de afirmar exteriormente a própria superioridade. Essa contradição só pode persistir se não for exposta à claridade da consciência (na alegoria, a luz do sol), pois no momento em que digo: "sou invejoso", a inveja se converte, ou numa admissão da minha inferioridade, ou num esforço sincero de competição com aquele que eu invejava.

O comentário é quase que o triplo disso, mas acho que já deu pra perceber. Falcón pega na sua mão e te ajuda e, tendo em vista o teor seguro e confiante de sua introdução, o teor de quem nos diz uma verdade, uma certeza, ele te estimula a estudar Ovídio e arranjar-lhe um cantinho no coração. O difícil trabalho de plantar uma sementinha em quem poderia passar a vida inteira sem descobrir esse continente chamado Ovídio, ou, entendendo que o contato apaixonado com um grande poeta é sempre a maneira mais prática de ligar as luzes, estamos diante do difícil trabalho de fazer com que a pessoa se interesse por literatura de uma maneira que até então (quem sabe restrita ao alcance da cabeceira e da leitura terapêutica pra pegar no sono) ela nunca vislumbrara.

Agora só não espere encontrar interpretações esclarecedoras a respeito da obra ― soldado!, você receberá munição, munição e munição, entendido? Se o enfoque de Falcón é em Ovídio como um exímio contador de histórias, então ele busca esclarecer tudo pra que você saboreie as histórias contadas e se engrandeça com elas. Ele não se interpõe, portanto. O propósito pode parecer menor, mas é bonito: ele te dá asas pra voar. O que não quer dizer, naturalmente, que inexistam momentos de brilhantismo nas notas de Falcón, momentos que extrapolam o propósito de acompanhamento e ganham em robustez e acuidade. Numa nota em que comenta a opção de Bocage, no episódio do Dilúvio, de traduzir mundi moles laboret por "E a máquina do mundo arruinada", Falcón diz:

Bocage toma um excerto de Lucrécio, também sobre o fim do universo, a expressão "a máquina do mundo": sustentata ruet moles et machina mundi (De Rerum Natura, V, 96). Camões já a utilizara gloriosamente no Canto X de Os Lusíadas, o que provavelmente motivou Bocage a reaproveitá-la como expressão já sedimentada em português. Ovídio usa mundi moles laboret; compare-se isto a machina mundi ruet de Lucrécio e à "máquina do mundo arruinada" de Bocage. A imitação é evidente, e impressiona a ousadia (e sucesso) do tradutor português em valer-se dum poeta latino anterior a Ovídio, que o mesmo Ovídio não quis imitar.

Isto, ou quando Falcón enxerga uma pitada de humor na forma como Ovídio deixa corpora, no final da frase que abre a obra, para o segundo verso ("In nova fert animus mutatas dicere formas / corpora"), são momentos que, a bem da verdade, poderiam ter se repetido com mais frequências nos comentários, haja vista demonstrarem que estamos diante de um leitor cuidadoso o suficiente para conseguir perceber o aproveitamento poético de um cavalgamento, por exemplo. Pois uma vez que o propósito da obra é, como dito, didático e edificante, comentários que extrapolassem a elucidação sintática, terminológica e mitológica poderiam servir de estímulo a uma educação estética de nossos leitores, algo que me parece sempre pertinente. (Ainda mais em tempos onde ficamos entre a cruz e a espada de discursos zuretas da outra e a mesóclise insossa do outro.) E olha que a tradução de Bocage é um terreno fértil para que o leitor consiga haurir bons exemplos. Um, ao acaso, na abertura do mito de Io:

          Nos fundos lares Ínaco escondido
          Alteia com seu pranto as águas suas;
          Io, a filha gentil, perdida chora:
          Não sabe se está viva, se entre os manes:
          Mas porque não a encontra em parte alguma,
          Em nenhuma do Globo a julga o triste,
          E o pior se lhe antolha ao pensamento.

Fico com a sensação de que é pouco esclarecer, somente, o significado de termos como "manes" ou "antolha", ou então explicar o que o terceiro verso quer dizer (em ordem direta: "[Ínaco] chora [por] Io, a filha gentil, [que está] perdida"). Por que não apontar, por exemplo, a efetividade que o nome de Ínaco ganha se disposto na posição de cesura do verso decassílabo, ou então a alternância entre as palavras "seus" e "suas" no segundo verso, a alternância entre "alguma" e "nenhuma" entre os versos cinco e seis ou a assonância em I no terceiro verso, a aliteração em LH (um tipo de aliteração rara) no último? São efeitos especiais, digamos assim, que se por um lado traduzem por exemplo o jogo entre usquam e nusquam do original, por outro recriam momentos luminosos como a aliteração em T seguida de uma assonância em A no segundo verso: "fletibus auget aquas natamque".

Mas apesar disto, é um bom acompanhamento, feito com paixão e seriedade. A edição digital da obra está muitíssimo bem montada, o que é algo raro, ainda mais se considerarmos que muitos ebooks são feitos praticamente pelas coxas. Aqui não. Tudo funcionando direitinho, os índices ativos, as notas... Que maravilha. E por 15 temers apenas. Não sei direito como está a edição física (falo no quesito dimensão, papel, cheiro, essas coisas, pois quanto à diagramação você encontra um número bom de previews disponibilizados pela editora), que custa o quádruplo disso, mas, considerando que é o tipo de obra pra ser saboreada ― em especial por ser Ovídio e por ser Bocage, mas também, como Rafael Falcón argumenta de forma convincente, por ser um autor que faz com que nos comprazamos em ouvir boas histórias ―, o preço ainda assim se justifica (mesmo porque vamos convir que pagar 60 temers por um livro não é caro; caro é você pagar 60 temers pra ir numa balada e ver um DJ plugar um pen drive). Portanto: Vale.