Johann Wolfgang von Goethe (1749 - 1832).

 


Goethe escreveu a segunda Canção noturna do andarilho na parede de uma cabana no cume do monte Kickelhahn. Isso em 1780. Essa cabana um século depois pegaria fogo, e, outro século depois, seria reconstruída e receberia uma homenagem com placas contendo traduções do poema para 15 línguas.

É difícil falar dele. É um poeminha danado de porreta. Dos muitos adjetivos que poderíamos usar para caracterizá-lo, "perfeito" parece ser o que melhor se encaixa. A primeira coisa que você precisa ter em mente é que ele é o segundo poema a receber o mesmo título, e que, na verdade verdadeira, ele nem se chama Wandrers Nachtlied, mas sim Ein gleiches, isto é, "Outro". O primeiro você pode ler na postagem sobre Goethe no escamandro: aqui. O segundo é esse que eu compilo de forma generosa pra vocês.

A segunda coisa que você deve notar é a forma como Goethe mescla elementos naturais que advém de praticamente tudo quanto é banda, do natural ao vegetal e do animal ao humano. Isso dá uma dimensão cósmica muito forte ao poema, que aborda, basicamente, o instante absoluto de contemplação e placidez (e que no final, quem sabe, até abarque a morte, se pudermos ler em Ruhest uma conotação fúnebre). Afinal de contas, nos versos 1 e 3 nós somos informados que em todos os cumes e em todas as frondes existe paz e silêncio; oras, só isso já é o suficiente para que consigamos abarcar uma parte considerável da esfera terrestre, o que a menção ao silêncio das aves nos bosques, no verso 6, contribui para aumentar. O que deve ser notado, contudo, é que esse silêncio não parece ser um silêncio qualquer: na verdade, é um silêncio absoluto que escutamos quando estamos no alto, o que a tripla menção ao cume, à fronde e à ave confirma (ave, leia-se: animal alado, animal que habita as alturas). O toque terreno que existe no poema não advém exatamente do bosque, mas do Wandrers, que pressupõe, consigo, um contraponto de experiência, ou seja, alguém que já caminhou muito e que conhece muito as trilhas da terra. E de modo que uma canção noturna desse mesmo andarilho possui conotações de acalanto e de descanso, o que, de todo modo, faz com que, haja vista que o andarilho percorreu caminhos demais, ele, por conseguinte, sabe reconhecer um momento de paz, tão imerso ele está nos caminhos que a terra tem a lhe oferecer. De todo modo, qualquer sentimento de exaltação que seja, por mais terreno que presumivelmente possa ocorrer no espírito de quem contempla a cena, é como que anulado no verso 7 com Warte nur, isto é, "fica quieto aí que em breve você também vai sentir essa brisa". O que isso significa?

Bem. Podemos ler que a simples menção ao "tu" é uma maneira de ampliar de modo total o escopo do poema, uma vez que ele alcança não mais um sujeito indefinido, mas passa a marcar de maneira clara um "eu" e um "você" (ou seja: o "tu" é uma marcação que faz com que o círculo de alcance do poema seja total, contrário ao que ocorreria se continuássemos falando de um "ele", que, no mínimo, pode não ser o eu lírico mas também pode não ser eu, leitor). Não sabemos exatamente onde se localiza o eu lírico, mas podemos presumir que ele se coloca ao lado do "você" uma vez que parece estar explicando tudo o que acontece quando você se encontra no alto. Ou, então, esse eu lírico é alguém que já esteve lá e está dizendo que, um dia, esse "você" também chegará a essa contemplação absoluta. O fato é que tanto um como outro caminho fazem com que o "você", que nesse caso nós podemos tomar até mesmo como a gente, leitores, embora possa ser qualquer outro alguém, até mesmo um terceiro além de quem lê e quem escreve; qualquer caminho fazem com que o "você" seja incluso na tessitura do poema, e, assim, o instante de calma atinge a todos. Nenhuma perturbação pode ocorrer a partir de então, visto que nós não só nos encontramos num plano apartado do plano terrestre como também parece que anulamos qualquer possibilidade de interrupção que seja. Com este último passo, Goethe estabelece uma comunhão universal em seu pequeno e notável poema.

A construção formal do poema eu creio que também é digna de nota. Nós temos, aqui, uma mescla de versos de três tamanhos: pequeno (versos 2 e 3), médio, que predomina (versos 1, 3, 5, 7 e 8), e grande (verso 6). Na primeira metade do poema (versos 1 a 4) temos um esquema de rimas ABAB e uma mescla de versos médios e pequenos. É uma maneira de mimetizar o alto e baixo do cume e da fronde com a paz e o silêncio. Já na segunda metade (versos 5 a 8), nós temos três versos médios que são como que interrompidos por um verso grande e um esquema rímico CDDC. Aqui não temos mais um jogo de alternâncias, mas sim um movimento que parece simular um fôlego seguido de um mergulho interior.

Naturalmente, um poema desses, ainda mais considerando que é dos mais famosos em língua alemã, despertou o interesse de muitos tradutores. A compilação que faço consegue atestar isto de maneira clara. Mas faço notar que o poema de Goethe não parou por aí. Georges Perec e Eugen Helmlé, por exemplo, expoentes da OuLiPo, criaram em 67 uma peça radiofônica chamada Die Maschine, que simulava um computador programado para analisar e decompor o poema de Goethe. Essa tal máquina basicamente usava todos os recursos desenvolvidos pela OuLiPo até então, e ia como que permutando e explorando o poema de Goethe com base em várias vertentes e bancos de dados, como, por exemplo, um banco de dados de citações literárias que iam de Borges e Hölderlin a Dickinson e Bataille. Você consegue ler a peça aqui. À medida que prosseguia, a peça ia como que apagando sua programação original até o instante em que sabotava a si mesma e entrava em pane: instante que, diga-se de passagem, coincide com o momento em que a máquina busca encontrar sinônimos para Ruhest, e, passando por "reposo", "quiet", "descanso", "silentium", termina com "pzzz / pzzz / pshsh / pshsh // pshsh / shsh / shsh / shshshsh". Alguns estudiosos como David Bellos chegaram a comparar o funcionamento de Die Maschine com HAL em 2001, de Kubrick; outros, a abordam ao lado de Se um viajante numa noite de inverno, o romance de 79 escrito por Italo Calvino.

O poema também foi musicado de maneira admirável por Schubert. Ouça:


Mas fiquemos com o poema.

§

P.S. (28/05): Para minha surpresa, Nelson Ascher publicou, como é de praxe em seu trabalho, uma segunda versão para sua tradução, que incluo logo após a primeira.

P.S. (08/07): Adicionada a versão de André Vallias. Não tenho lá muita certeza quanto à data.

P.S. (03/09): Adicionada minha versão primitiva para o poema.

P.S.(11/09): Adicionada a tradução de Erwin Theodor, inicialmente publicada no livro Pequena Antologia da Lírica Alemã e, depois, inclusa em seu ótimo ensaio sobre literatura alemã traduzida no Brasil, aqui. Recebendo a notícia de que Erwin Theodor faleceu no início do mês, presto, aqui, de forma singela, minhas homenagens.

P.S.(04/01/17): Adicionada a tradução de Mário Faustino, primeiro publicada no Suplemento, em 27/01/57.

P.S.(15/10/17): Adicionada a terceira versão de Nelson Ascher.

P.S.(26/02/18): Adicionada a tradução de Trajano Vieira para o fragmento 89 de Álcman, uma das inspirações de Goethe. Lembro que o poema é também epígrafe para o conto Silence  A Fable, de Edgar Allan Poe.

P.S.(15/06/18): Adicionada a quarta versão de Nelson Ascher.




(Foto de 1869, feita por August Linde, do poema, gravado na parede da cabana em Kickelhahn.)



NOTURNO DO VIANDANTE.
trad. Pedro de Almeida Moura. [1949]

Sobre todos os cimos da montanha há paz,
Mal percebes uma aura pelas frondes;
Emudeceram, na mata, os passarinhos ―
Espera, que, dentro em breve, também descansarás.

§

NOTURNO DO VIANDANTE.
trad. Mário Faustino. [1957]
em: Suplemento do Jornal do Brasil, 27/01/57. Disponível aqui.
Sôbre os altos, de leve,
Baixa o descanso,
A paz.
Sôbre toda folhagem
Mal se percebe o manso
Sôpro da aragem.
No bosque as aves não cantam mais.
Espera o fim da viagem:
Breve
Também descansarás.

§

CANÇÃO NOTURNA DO VIANDANTE.
trad. Erwin Theodor. [1963]
em: Pequena Antologia da Lírica Alemã. Retirada daqui.
Nos altos cimos a calma
se esconde.
Tu a sentes em todas
as frondes.
Nenhum sopro vem.
Na mata quedam as aves serenas.
Espera um instante apenas:
Descansarás também.

§

CANÇÃO NOTURNA DO PEREGRINO.
trad. Paulo Quintela. [1968]

Por todos estes montes
Reina paz,
Em todas estas frondes
A custo sentirás
Sequer a brisa leve;
Em todo o bosque não ouves nem uma ave.
Ora espera, suave
Paz vais ter em breve.

§

NOTURNO DO ANDARILHO.
trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. [???]

Em todos os cumes:
Sossego.
Em todas as copas
Não sentes
Um sopro, quase.
Os passarinhos calam-se na mata.
Paciência, logo
Sossegarás também.

§ 

CANTO NOTURNO DO ANDARILHO.
trad. Haroldo de Campos. [1982]
em: Da actualidade de Goethe, Revista Colóquio/Letras, nº 68, jul. 1982, p. 5-10.

Sobre os picos
Paz.
Nos cimos
Quase
Nenhum sopro.
Calam aves nos ramos.
Logo, vamos,
Virá o repouso.

§

CANÇÃO NOTURNA DO ANDARILHO.
trad. Nelson Ascher. [1998]
em: Poesia Alheia, Topbooks, 1998, p. 270-271.

No alto das colinas
há paz;
não se ouve, ali nas
frondes, mais
que um sopro manso.
Nem há no bosque um trino. Aguarda:
tampouco tarda
o teu descanso.

*

trad. Nelson Ascher [2016]
em: facebook pessoal do tradutor, 28/05.

Toldam-se as colinas
em paz,
nem se ouve ali nas
frondes mais
que um ar; detêm-
-se os pios na mata. Aguarda: em breve,
tua paz já deve
chegar também.

*

trad. Nelson Ascher [2017]
em: facebook pessoal do tradutor, 15/10.

Toldam-se as colinas
em paz.
Não se ouve ali nas
frondes mais
ventar. Detêm-
-se os pios na mata. Aguarda: em breve,
tua paz já deve
chegar também.

*

trad. Nelson Ascher [2018]
em: facebook pessoal do tradutor, 12/06.
Tudo nas colinas
é paz,
nem se ouve ali nas
frondes mais
ventar; detêm-
-se os pios na mata. Aguarda: em breve,
repouso deve
te vir também.

*

trad. Nelson Ascher [2020]
em: facebook pessoal do tradutor, 05/03.
Tudo nas colinas
é paz.
Nem se ouve ali nas
frondes mais
ventar. Detêm-
-se os pios na mata. Aguarda: em breve
tua faina deve
pausar também.

§

trad. Gerte Busse Scheltzke. [2001] 
em: aqui.

Por sobre a mata
silêncio e paz.
Do sopro nas folhas
tu mal sentirás
um leve vaivém.
Dormem as aves
na mata silente.
Aguarde que em breve,
num embalo dolente
descansarás também.

§

UM IGUAL.
trad. André Vallias. [2005]
em: Zúnai, aqui.
Sobre cada monte
A calma,
Em cada fronde
Nem sinal
De brisa; calam-
-se os pássaros na floresta.
Espera! Em breve
Descansas em paz.

§

CANÇÃO NOTURNA DO VIANDANTE.
trad. Leonardo Antunes. [2015]
em: aqui.

Em todos os montes
Há paz,
Desde o horizonte
Sentirás
Ínfimo alento;
Os pássaros calam de leve.
Calma, que em breve
Dormes também tu.

§
CANÇÃO NOTURNA DO ANDARILHO.
 trad. Filipe Kepler. [???]
em: aqui

Acima de todos os picos
Há paz.
Na copa das árvores,
Tu mal notas
O vento soprar.
Os passarinhos calam na floresta.
Aguarda: logo,
Também tu hás de serenar.

§

CANÇÃO NOTURNA DO ANDARILHO. OUTRA.
trad. eu. [versão primitiva; 2016]
A paz, notada
Nos cimos.
Nas copas, nada
Ouvimos
― Nem brisa ― mais.
Nas matas, a ave se contém.
Breve tu vais
Dormir também.

*

trad. eu [2016]
Nos montes todos,
Paz.
Nas frondes todas,
Faz
Silêncio. O pio
De aves se cala no arvoredo.
Aguarda: cedo
Terás alívio.


WANDERER'S NIGHT SONG.
trad. Longfellow. [1893]

O’er all the hill-tops   
Is quiet now,

In all the tree-tops   
Hearest thou   
Hardly a breath;   
The birds are asleep in the trees:   
Wait; soon like these

Thou too shalt rest.

§

RAMBLER'S LULLABY.
trad. base usada por Perec e Helmlé. [1967]

Over all hilltops
is rest,
in all treetops
you feel
hardly a breath;
the brids are silent in the forest.
Only wait, soon
you too shall rest.

§

WAYFARER'S NIGHT SONG.
trad. Michael Hamburger. [1983]
em: Roman elegias and other poems & epigrams, Anvil, 2006, p. 31.

Over the hilltops all
Is still,
Hardly a breath
Seems to ruffle
Any tree crest;
In the wood not one small bird's song.
Only wait, before long
You too will rest.


WANDRERS NACHTLIED. EIN GLEICHES.

Über allen Gipfeln
Ist Ruh,
In allen Wipfeln
Spürest du
Kaum einen Hauch;
Die Vögelein schweigen im Walde.
Warte nur, balde
Ruhest du auch.




FRAG. 89, ALCMAN
trad. Trajano Vieira
Os cimos das montanhas dormem e as ravinas,
os vórtices e os istmos,
espécimes serpeantes comedoras
de terra negra,
bestas montesas e a estirpe das abelhas,
monstros no mais profundo mar de púrpura,
dormem espécimes de aves longialadas.

*

Εὕδουσιν δ' ὀρέων κορυφαί τε καὶ φάραγγες,
πρώονές τε καὶ χαράδραι,
φῦλά θ' ἑρπετὰ τόσσᾱ τρέφει μέλαινα γαῖα,
θῆρές τ' ὀρεσκῷοι καὶ γένος μελισσᾶν
καὶ κνώδαλ' ἐν βένθεσσι πορφθρέᾱς ἁλός.
εὕδουσιν δ' ὀϊωνῶν
φῦλα τανυπτερύγων.