Bílis.



Mudei. Não tem outra explicação pra quando se está lendo um ensaio do Hazlitt sobre o prazer do ódio em que ele começa falando de uma aranha repugnante que estava debaixo da mesa e do como ele poderia muitíssimo bem espatifar aquela aranha com um mínimo acesso e gesto de sua parte, e, no caso, durante essa leitura, você de algum modo se identifica e olha pra trás e vê aquela mesma versão sua, pretérita e com uns livros a menos na estante, que, de olhos arregalados após a leitura do Prefácio Polêmico de Northrop Frye, vê com maus olhos qualquer menção à crítica como valoração de obras literárias, e, portanto, antes quer ficar torto no seu canto estudando a poesia contemporânea do que emitir qualquer juízo que seja, dando a entender, não só para os desavisados mas às vezes até para si em seus momentos mais exaustos, que tudo, tudo é válido e o mais são óticas e óticas, e, venha a ser o caso de fitar a medusa, fale só do que caiba ser falado nos arredores da lâmina de ensaio e deixe que o leitor se encarregue dos rebotalhos em condição de pressupostos.

Mudei. Ainda guardo comigo algumas lições que a custo e a sós fui aprendendo. Ainda sei que quando alguém pretende ser crítico, esse alguém não pode cair na esparrela de lançar sobre a pobre da obra um monte de definições e bibliografias, como se o crítico fosse uma valise de araque. Venhamos e convenhamos que ele não deixar de ser, claro que não; mas ele é mais: crítica, lembro que falei disso num texto longo e enfadonho, eu rimo e suponho, é como uma espécie de equipamento de mergulho que te permite captar a particularidade da obra, a artéria que possibilita o movimento, e, só quando você consegue pegar essa minúcia é que você pode fazer a comparação adequada, a valoração que lhe caiba fazer.

Isso é crítica. Não pingue-pongue de generalidades. Nada disso. Crítica: argumentos. Argumentos que olhem pra obra e na obra residam. Sei que é muito tentador fingir que se faz crítica falando dos descalabros da sociedade, de suas opressões e sua moral tacanha. Tem gente que não presta atenção direito e quando menos espera invés de resenha está escrevendo uma nota de repúdio à la mannière de qualquer centro acadêmico incrustado "No interno fundo das profundas / Cavernas altas" ou aquele tipo de análise cultural que se disfarça mal e mal de amontoado de indiretas políticas. Quanto a estes eu não posso fazer nada. São íncolas de terras outras. Outros costumes. Provavelmente desconhecem esse trabalho de atenção e esse instante de serenidade que toda crítica pressupõe.

Pois muito bem: sinceridade. Não é do meu costume reler as coisas que escrevo, mas tenho uma ideia boa do que já escrevi e sei que uma vez eu disse que, dentro tudo o que se pude dizer como erro da crítica, erro mesmo, erro feio é quando ela esquece as lições que nossas avós nos ensinaram: lições de cordialidade, posso dizer em suma, aquilo de você não parecer um panaca falando mal e tripudiando em cima do trabalho alheio. Mas eu mudei, e sinto que quando vou falar de um livro hoje, me é difícil, de um modo que antes simplesmente não era, não cair nas raias da ironia ou do sarcasmo em algum momento (em grande parte pois eu só consigo escrever um texto decente ― não aqueles simulacros, portanto, que a rotina impõe que façamos ― se for na base da coloquialidade entremeada de malabarismos e chistes). Ainda me controlo, é certo, para que não me resuma no pior tipo de crítica: aquela que odeia tudo e vive apenas de um pedestal. Sim, é certo que o faço, pois é certo que a lição da vovó ainda me perturba mesmo quando me encontro diante de uma obra que, de tão ruim que a acho, ou de tão insatisfatória, me incita à diatribe.

Afinal de contas, não é que eu julgue que a crítica hoje precisa de mais pessoas dispostas a falar mal de livros. Se quer saber, acho que um diagnóstico desses é de uma pequenez graúda. O que a crítica precisa e sempre precisou é de críticos que sejam rigorosos não só com seu objeto, mas também consigo mesmo, em tudo o que isso implica de entender que a crítica é uma questão de argumentos e, portanto, a crítica precisa ser a mais franca possível (pois a crítica é, aliás, o ápice da criticabilidade, isto é, tentando colocar sem que precise me valer de palavras com sete sílabas, a crítica é o estágio máximo da franqueza, é quando o crítico se abre da maneira mais ampla possível ao debate e, posto que esmiúça e deixa bem claro todas as posturas que adota, é quando o crítico se faz o mais criticável possível, visto que o objetivo de toda crítica é muito mais o debate do que o título de crédito válido para todas as análises de vestibular a partir de 2116); em tudo o que isso implica de entender, eu dizia, que a crítica é questão de argumentos mas também que ela é questão de sinceridade consigo mesmo, posto que quando eu me referia a cordialidade em textos passados, ou qualquer ideia que aí redundasse, eu não estava me referindo a você mentir em público para o autor; na verdade, eu só dizia que você tem de entender que está diante de alguém que para todos os efeitos apenas escreveu um livro e que demanda de você uma opinião sincera (ou, melhor dizendo, não é que o autor demande, mas que seu leitor, essa instigante incógnita, o demande), visto que esse é seu maior tesouro e o ponto de chegada de toda crítica: o ponto em que o crítico consegue sustentar suas opiniões e responder por elas.

Então sim, por mais que o prazer da discordância e da frase de efeito e do rigor postiço queiram se impor de uns tempos pra cá quando vou falar de livros, e por mais que vez ou outra eu não segure a onda e acabe caindo numa formulação que eu mesmo, num instante de serenidade posterior, não julgue adequada, eu continuo sendo em essência aquele mesmo leitor empolgadíssimo e esperançoso com a produção contemporânea, aquele leitor que ainda gasta madrugadas de sábado lendo amostras de livros no Clube dos Autores e que diante de um livro que apresente uma poesia que não desça bem pela goela, ou até que me desagrade a ponto de eriçar o cálcio da espinha, eu continuo sendo aquele leitor que pergunta pra si mesmo se o juízo que estou prestes a defender valer-se-á de bons argumentos, argumentos que eu defenderia de maneira honesta no sentido de que posso responder por aquilo que julgo ser a artéria do texto ou se, pelo contrário, o que eu fiz foi enegrecer de cintilações de eruditismo a centelha de luz daquela obra. É, isso mesmo, a centelha de luz. No fundo, no fundo eu ainda baixo um decreto para meus neurônios dizendo que toda obra tem sua importância, mesmo que, com maledicência, eu aproveite a anuência se espraiar nos rostos de quem me ouve para emendar dizendo: "ainda que essa importância seja acumular poeira ou servir de calço para o pé da mesa".

É maledicente dizê-lo? É. Eu poderia dizer de forma diferente? Ô. Então o que está se sucedendo? Bílis. Sabe? Bílis: esse texto. Isso é o que está se sucedendo. Pois é claro que diante do jardim de infância eu posso dizer uma frase dessas e as pessoas aplaudirem de pé. Elas sempre aplaudem. Elas adoram isso. Elas não querem, diante de um texto crítico, debaterem com o crítico, criticarem a crítica, lidarem com o livro, com uma outra leitura e com a sua própria leitura ao mesmo tempo. Eles querem ver o circo pegar fogo, eles querem um instante para que possam inflar o peito e dizerem: "é isso aí, mer'mão".

Não que me agrade. Apenas que me ocorra. Porque eu não vou dizer bem quanto aos outros; os outros que cuidem de seu galinheiro; mas eu quando leio um livro eu salto de cabeça naquilo, e me deixo levar por uma plêiade de emoções sem peso algum na consciência. Então o que surge é uma frase de efeito, eu disse, uma maledicência, eu disse. Respondo por elas. E falo disso não porque seja uma maneira do leitor me desculpar pelo que foi dito. Primeiro porque o leitor não está se importando muito; quem se importa mais acaba sendo o poeta, e, convenhamos, o trabalho da crítica não é com o poeta (o poeta está do outro lado da cadeia alimentar: se ele quiser entrar no nosso território, é bom que tire o salto alto e vire mais um de nós, leitores). O crítico fala com o leitor, com um seu igual, e de tal modo que se a preocupação com a bílis lhe vem à cabeça como agora me vem, é muito mais no sentido de que ele se preocupa em que a discussão verdadeira, a que realmente importa, não estagne em poças d'água e, ao invés de desmantelar clubes da concórdia enfadonha, além de mosquitos da dengue gere outros desses mesmos círculos sem tirar nem pôr, inclusive com os célebres tapinhas nas costas e o egrégio sentimento de milícia contra a incompetência nacional. Pose, vamos ser mais claros. Preocupar-se com a bílis é isso: preocupar-se em não ficar posando para as lentes ávidas de quem deglute polêmicas sonhando pôr abaixo cortinas de hipocrisia. Esse pessoal, eu já disse, não quer nada com nada.

Então não é que eu esteja pedindo vênia; na verdade, eu falo de bílis mas não acho que tenha chegado a um estágio acentuado de bílis, bastando que fale que em todos esses anos trabalhando na surdina, completamente fora dos radares, nem quando fui mais áspero com o poeta eu obtive desse mesmo poeta a inimizade; e além do mais, em todo texto que escrevi eu sempre fiz questão de ser franco e sincero, justamente, ora pois!, e fazer questão de falar também dos momentos bons de um livro, de um poeta. Crítica comigo, bem se entenda, funciona assim: argumentar sobre o porquê achei aquilo ali ruim sem me furtar de, tendo achado algo bom ou digno de algum elogio que seja, falar disso também. Segredo algum. Repitamos: franqueza, sinceridade; franqueza, sinceridade. O resto é metacrítica.