A lista negra de Constantino.


(A janela aberta, Matisse, óleo sobre tela, 1905.)


De tempos pra cá assunto é o que não tem faltado. Então vocês sabem. Girei a roleta e deu nisso aqui: Lista sugerida para boicote a artistas, "intelectuais" e "jornalistas" petralhas. Sem se importar com a pecha de macarthista, Constantino diz: "Chega de ser tolerante com esses intolerantes, que ameaçam nossas liberdades, que compactuam com um tirano." O plano:

Não comprem mais nada deles. Não assistam seus programas, não leiam suas colunas. Não comprem seus livros, não vão às suas peças de teatro, não comprem seus CDs. Eles precisam saber que não será impune atentar contra a democracia brasileira. Xô, petralhas!

Um dia depois, Constantino expandiu sua lista para mais de 700 nomes: aqui. E o que se seguiu depois, ó amigos leitores, foram dois textos abordando o impacto negativo da lista de boicote: aqui e aqui (este último na verdade um áudio).

Obviamente eu tenho uma ideia de quem Rodrigo Constantino seja, mas não faço a mínima de quais são suas posições. De direita e liberal eu sei que ele é, e conservador aparentemente sim. E não digo isso com qualquer preconceito que seja, pois, como já disse outras vezes aqui no bloguinho, problema nenhum no camarada sê-lo. (Se você realmente enxerga um problema nisso, é hora de trocar os parafusos.) Mas eu gostaria de fazer uma reflexão rápida a respeito do que a lista de boicote dele tem de grave ― leia-se, de ideia furreca.

Antes, porém, que alguém resolva levantar o pixuleco e dizer que sou petralha ― o que seria um tanto quanto irrelevante no âmbito da discussão pois mesmo que o título do bloguinho fosse "Não vai ter golpe", ainda assim o que importaria seriam pura e simplesmente os argumentos ―, eu já deixo bem claro que em essência a postura macarthista de Constantino não difere daquela feminista que não assiste filmes do cineasta Fulano de tal que, meses atrás, deu uma declaração machista numa entrevista. Pois o que está em jogo ― e com isso eu meio que já entro no argumento central ―, é que estamos diante de uma confusão odiosa entre artista e obra que promove esse tipo de descarte. Oras: a obra de arte, dentre as várias coisas que pode ser ― nem que simplesmente calço pra sua mesa ―, reconhecidamente é pelo menos duas: 1) objeto de invenção e 2) objeto eminentemente estético.

Com o primeiro nós temos que a obra de arte, muito mais do que um objeto inventado, é um objeto inventivo. Isso por si só estabelece uma distância necessária entre artista e obra, a qual, por certo, não é absoluta. É muito difícil existir uma leitura que não pressuponha a figura do artista. Não chego a dizer que se trata de algo impossível pois realmente acredito que leituras que enfoquem apenas a obra de arte e em nenhum momento evoquem a figura do artista são absolutamente possíveis (penso por exemplo numa análise estruturalista de um romance). Mas a regra é que evoquemos a figura do artista nem que seja apenas como recurso idiomático (falarmos aqui e ali do "poeta" quando poderíamos substituir esse termo por qualquer outro, como "texto") ou então num movimento de pressuposição, como, por exemplo, quando eu analiso um poema de um autor e em determinado instante de análise trago à baila outro poema desse mesmo autor. Oras: o simples fato de que eu tenha trazido outro poema deste autor e tenha pressuposto uma conexão entre ambos já basta para que o artista surja das moitas.

Nada disso, porém, quer dizer que leituras que estabeleçam um liame excessivo entre artista e obra devam ser vistas com bons olhos por análises propriamente artísticas. Isso é vesguice. O enfoque da crítica de arte é a obra de arte. Não faria o menor sentido que fosse o artista. Eu posso, com base na obra, cooptar informações da vida do artista que me pareçam relevantes para entender, por exemplo, as bases que deram ensejo à criação de certa passagem, mas esse tipo de cooptação sempre funciona no sentido de que o enfoque é a obra de arte e a ela sempre estaremos voltando. Se meu argumento depende de maneira fulcral da vida do artista, se ele parece se fechar apenas com base em informações biográficas, estamos diante de um "equívoco" de mesma raiz do que fazer depender a análise de uma obra de informações contextuais. E se ponho "equívoco" entre aspas, é nem tanto pra dizer que uma análise que o faça redundará como inútil necessariamente; na verdade, é apenas pra dizer que esta análise possuirá pouco de análise artística, sendo, quem sabe e de forma torta (e por isso o termo "equívoco"), outra coisa (por exemplo uma análise cultural, em seu sentido mais amplo).

Isto quanto à primeira característica da obra de arte ― o fato de que é um objeto de invenção. A segunda, de que ela é um objeto eminentemente estético, envolve entendermos por "objeto estético" um "objeto que afete os sentidos", ou seja, a obra de arte atua na sensibilidade do leitor com uma iminência nós podemos dizer peculiarmente criativa, a tal ponto que, mesmo se pressupuséssemos que a única interpretação correta de uma obra de arte fosse aquela que de algum modo descobrisse as intenções do autor, isso ainda assim não seria o suficiente para que o caso se desse por encerrado pois (e aqui eu sigo basicamente P. D. Juhl) não é o que buscamos ao interpretar uma obra de arte. Quando o fazemos, nós estamos indo de encontro justamente ao fato de que a obra de arte é um objeto que mexe conosco e que, quando se interpreta uma obra de arte, a importância (para evocar a frase lapidar de Barthes) não é o de se descobrir a verdade e sim construir validades. Ou seja: buscamos construir interpretações que sejam válidas e não acharmos uma interpretação que seja a única possível, embora, claro, pela própria sistemática de construção de interpretações (e estou voltando para Juhl), nós de modo geral achemos que só existe uma interpretação correta para uma obra de arte.

Se unimos essas duas coisas, já podemos observar que uma aproximação excessiva entre artista e obra é como embarcar numa canoa furada. E aqui eu deixo claro que estou falando de uma aproximação excessiva. Por certo não estou pedindo a que ostracizemos o artista. Na verdade, pelo contrário; se o artista tem opiniões tais e quais, é bom que saibamos quais são; elas podem vir a calhar ou, ao menos, a que não o pintemos de maneira errônea. Excluí-lo de forma absoluta, que fique bem claro, é também um excesso. Mas o cerne do que exponho eu mantenho. Afinal de contas, o artista pode muito bem enquanto pessoa ser alguém de opiniões para nós odiosas, mas isso não quer dizer que não podemos nos emocionar com sua produção artística. Na verdade, quando nós dizemos ― e aqui creio que haja uma unanimidade a respeito ― que um dos benefícios da obra de arte é nos aprimorar enquanto seres humanos, nós não podemos pretender que isto seja feito de forma pacífica, entrando em contato apenas com objetos a priori ou a posteriori edificantes ou, pior ainda, consumindo apenas obras de artistas que possuam posições análogas à nossa. A grandeza incômoda que a obra de arte pode nos fazer é também a de que nós venhamos a admirar um artista que, enquanto pessoa, é alguém que nos parece um calhorda. Manifestarmos admiração por pessoas assim é uma maneira automática de admitirmos que o mundo vai muito além de nossa casca de noz e que, embora eu seja um liberal, eu posso me emocionar com Agosto 1964 de Ferreira Gullar ou que, embora eu seja uma feminista, eu posso apreciar a ironia mordaz nas peças de Nelson Rodrigues.

A lista de Constantino, portanto, é odiosa pois faz com que nós percamos esse tipo de experiência. E veja que estou dizendo isso sem nem entrar no mérito de se realmente acho uma boa pegarmos os artistas e intelectuais boicotados por Constantino e os jogarmos na lata de lixo. Que nada. Só tomando como base a primeira lista, eu bato o olho e afirmo pra vocês que tem gente aí que eu considero como gente grande em nossa vida cultural, gente de produção respeitável. É gente como Chico Buarque de Hollanda, Luis Fernando Veríssimo, Pablo Villaça, Mário Sergio Cortella ou Miguel Nicolelis ― nomes esses que selecionei buscando realçar a abrangência possível, no que chego até mesmo a observar que eu poderia muito bem expandir ainda mais e citar por exemplo Luiza Trajano, dona da rede de lojas Magazine Luiza e suficiente pra passarmos a rasteira em quando Constantino, numa de suas contra-respostas, afirma que não tem ninguém da lista realmente trabalhador, ninguém que de fato gere renda ― caso, é claro, realmente queiramos seguir tal e qual a lógica esdrúxula do argumento, essa de que um Gilberto Gil não é um trabalhador e de que ele não gera de fato renda (e não adianta nem mesmo espernear: coisas como assessoria de imprensa não existem no mundo macarthista de Constantino, assim como não existem casas de show que precisam de uma atração ou gravadoras que precisam de alguém cantarolando).

Aqui eu pretendo ir um pouco mais na raiz do problema. Não se trata de nos limitarmos apenas a constatar o fato dela ser forçada ou não, o fato dela pretender um respaldo jurídico coercitivo ou não ― em suma, o fato dela buscar ser empurrada pela garganta dos outros ou não. O fato de que ela pretenda ser simplesmente uma sugestão voluntária não chega nem mesmo a ser um mérito. É o mínimo do mínimo, ora essa. Se digo que ela é odiosa, é porque ela joga fora a produção intelectual de maneira muitas vezes grotesca ― o que você pode observar pelo simples fato de que, embora na primeira formulação ela tenha sido uma sugestão e, portanto, partido do que o próprio Constantino achava de cada um daqueles nomes (embora também seja plausível de que alguns dos nomes da lista inicial Constantino soubesse apenas por alto), já na segunda lista ele simplesmente copiou e colou uma lista maior, e, se brincar, não sabe nem mesmo opinar quem são muitos daqueles nomes ali dentre os 700, isto é, ele fez um trabalho de leitura preconceituosa muito mais grave e muito mais amplo. Ao invés de dizer: "ei, eu conheço quem é você, já topei contigo", ele diz apenas: "você está do lado de lá dessa linha daqui, ó; portanto, chispa".

Se você parar, com um pouquinho de boa vontade que seja, pra pensar na situação, vai perceber que isso é um absurdo. Não dá pra embarcar numa canoa dessas. É só você imaginar a situação de um artista que, muito bem, hoje está na lista mas, vamos supor, daqui uma semana solta uma entrevista bombástica achincalhando o PT de cima abaixo. Pois bem. Então ele sai da lista? Vamos dar mais um passo. O cara sai da lista, a gente resolve conferir seu trabalho e, olha só, olha só, não é que o cara produz umas coisas legais? O problema é que... nesse caso... nesse caso nós magicamente passamos a consumir sua produção artística ― a apreciá-lo? Se assim é, então ou a gente aceita o artificialismo dessa guinada de opinião própria ou então desconfia que no fim das contas esse cara sempre foi bom. Mas se ele sempre foi bom, então porque só fomos dizê-lo depois que ele saiu da lista de boicote ― ou então, você não concorda comigo que foi um belo dum desperdício você só ter descoberto que o cara produzia umas coisas legais depois dele ter achincalhado o partido? (Digo, você poderia estar gostando dele há mais tempo!...) A lista estava nos impedindo, de algum modo? Tudo leva a crer que sim. O que faz com que a lista nos cerceie e, assim sendo, se torne insustentável querer unir a ideia do boicote à liberdade de apreciação.

O fato de que Constantino não tenha buscado respaldo jurídico coercitivo à sua lista não faz com que ele preserve uma espécie de espírito liberal. Pelo contrário. Se ele realmente acredita em boicotes que funcionem com base em mecanismos tão tênues como o de uma lista de assinaturas contra o impeachment da presidenta ― o que não implica dizer que você seja um petralha, isto é, um baba-ovo do governo; você pode ter um zilhão de razões pra assinar algo assim, do mesmo modo que, considerando que a lista era de dezembro do ano passado, você pode tê-la assinado na época mas, frente aos acontecimentos recentes, voltado pra trás e não mais manifestar apoio ― enfim!... ―; se o cara realmente defende um procedimento desses, eu não vejo como um cara assim pode continuar batendo no peito e se dizendo liberal pelo menos nesse aspecto. Chega a ser ofensivo. A ideia de tolerância defendida pelo liberalismo precisa ser mais inteligente do que esse tipo de boicote peremptório e precipitado.

Mas claro que a discussão levantada por Constantino traz mais coisa. Um dos argumentos usados por ele em sua contra-resposta foi de que, boicotando esses artistas, nós mexeríamos em seu bolso. Todos são uns mamadores das tetas do estado, filhotes de cobra da Lei Rouanet. Bem. Aqui creio que posso levantar uma incongruência no argumento logo de cara ― ou seja, se eles mamam nas tetas do estado e se beneficiam da Lei Rouanet, então boicotá-los não adiantaria muito pois o dinheiro continuaria saindo do Estado (o que na verdade quer dizer ainda assim sair de nós... mas enfim; deu pra entender). E veja bem que eu ainda não quero puxar o debate muito para este assunto pois ainda tenho cá comigo algumas coisas meio nebulosas. Sei apenas que a ridicularização da Lei Rouanet não me parece interessante para um debate que se pretenda racional, e querermos dizer que ela beneficia apenas elefantes brancos estapafúrdios como biografias da Cláudia Leitte que custam o olho da cara é uma generalização perigosa.

Acho legítimo e interessante que o Estado fomente a arte por meio de mecanismos de inscrição como a Lei Rouanet, o que é algo totalmente distinto de um mecenato que poderíamos enxergar a princípio. Mas, repito, meu objetivo não é nem tanto esse. A questão é que se eu realmente quisesse uma forma de boicote a esses artistas de tal modo que eles não mais sentissem meu apoio econômico, bem, eu posso fazer isso de muitas formas, e claro que um boicote econômico seria uma boa ideia. Eu posso baixar a música do cara ou um pdf com seu livro, por exemplo (embora seja questionável a ideia de que baixar um disco de um artista não gera renda para esse artista ainda que indiretamente ― o fluxo de downloads, mesmo ilegal, de músicas desse artista pode implicar o aumento do número de pessoas que, embora não paguem por um CD, pagarão por um show). Não é algo que funcionaria muito com o teatro, mas pelo menos seriam formas que fossem. Agora: isso não quer dizer que por conseguinte eu vou boicotar a produção artística desse camarada. Há uma distinção fundamental que precisa ser efetivada antes que eu queira criar um liame entre uma coisa e outra ― isto é, realizar um boicote aos ganhos artísticos desse camarada é uma coisa, ao passo que realizar um boicote à sua produção artística é outra totalmente distinta. Sei muito bem que no geral um está ligado ao outro, pois não faz muito sentido que eu continue consumindo a arte do cara e ao mesmo tempo me esforce em boicotar seus ganhos, sem comprar nada que ele produza ― isto é, se eu baixo um mp3 com a música do cara, muitas vezes não é porque quero boicotá-lo financeiramente, mas sim porque, sacomé, esse lance de pagar por nunca foi comigo. Mas, de todo modo, a estratégia pode continuar sendo válida ― eu posso acreditar e realmente apreciar a obra do cara mas, eventualmente, não apreciar a forma como aquela obra em específico captou recursos. Então daí um boicote.

Mas um boicote desses, se não for levado com toda uma calma na hora de se sopesar as coisas, pode ser uma furada com muita facilidade. Eu sei que é difícil, mas nós realmente temos que aprender a separar as coisas. Mesmo que estejamos diante de um artista machista, por exemplo, esse cara pode criar uma obra de arte que nos emocione por motivos que muitas vezes nem adejam um debate propriamente machista. Na verdade, esse camarada que emite uma opinião machista pode muito bem criar um filme com personagens femininas marcantes e fortes. E mesmo que enxerguemos na obra um cunho machista forte, esse cunho pode ser "relevado", por assim dizer, diante da beleza da fotografia. (O básico do básico a respeito desse assunto é o fato de que eu posso valorar uma obra de arte de muitas formas, e, dentro dessas muitas formas, ter em mente o conteúdo machista pode muito bem ser um aspecto tido como menor.) Ou pode até fazer, essa obra que enxergamos como dona de um cunho machista forte, com que vejamos o mundo de maneira menos maniqueísta, e, mesmo diante de um personagem machista, mesmo com razões sérias para pressupormos que o artista quis colocar todo seu machismo naquela personagem e que aquele substrato machista provavelmente é verdadeiro e sincero, ainda assim gozarmos o que a obra tem a nos oferecer, haja vista que entrarmos em contato com realidades humanas degradantes é uma tarefa que a obra de arte pode nos oferecer a contento. Ela pode nos ajudar a compreender melhor esse lado podre da vida.

Se nós criamos uma linha grosseira que divide um lado do outro, de modo que por linha grosseira nós estejamos nos referindo às opiniões do artista apenas (e em formulações kafkianas dessa proposta nós chegaríamos num instante em que ler obras de arte seria ler prontuários de perguntas-chave: "votou em quem?", "combate o patriarcado?" etc), então essa aventura humana da arte arrisca perder-se. É como se estivéssemos apenas reforçando aquela bolha que parece ter se incorporado à nossa vida social. Isto é: você provavelmente já deve saber que o algoritmo de uma boa parte dos sites de pesquisa e redes sociais hoje em dia se estrutura no sentido de lhe fornecer conteúdo com base naquilo que você manifesta interesse (por exemplo clicando, curtindo ou compartilhando). Isso cria uma bolha, ou seja, você passa a consumir apenas o que te interessa. A lista de Constantino é, no mínimo, a perda da possibilidade de furarmos essa bolha que nós mesmos construímos.

Em certa parte de uma de suas contra-respostas, Constantino, exemplificando o porquê de nosso cinema ser visto como uma nulidade internacional ― e só aqui nós perguntamos em uníssono: será meshmo? ―, menciona os filmes do Lula, do Che Guevara, da Olga Benário... Filmes de propaganda, enaltecedores de comunistas safadões. Mas a questão é: olha, eu posso concordar contigo a respeito da patifaria de cada uma dessas vidas, mas será que 1) é lícito reduzirmos essas obras a uma propaganda, a um louvor vazio?; e 2) o que impede cada uma dessas vidas de, no todo da obra de arte, nos ensinar algo, nos emocionar de verdade? Isso que eu vou dizer não é um absurdo, sabem?, mas vejam só: a obra de arte pode fazer com que estremeçamos e às vezes até que nos compadeçamos de um facínora. Basta uma olhada rápida para Shxpr. E com isso não quero comparar o filme sobre o Lula com Macbeth; na verdade, as diferenças de realização artística entre uma obra e outra fogem do escopo de texto, mas o mínimo que eu digo é: considerem mesmo que de relance a possibilidade. Estou pressupondo que você é um leitor de arte. Seja um.

Então é o seguinte: boicotes devem ser tratados com cuidado. Um boicote para com produtos culturais e intelectuais é basicamente um voto de ignorância. Claro que não apenas isso pois, lançando mão de certos subsídios que julgo sólidos, eu decido simplesmente não mais consumir ou acompanhar determinada coisa em grande parte pois deixo de lado a possibilidade de mudança ou mesmo a produção de coisas distintas ― e na verdade muitas vezes eu sequer penso nisso. Mas o cerne de um boicote é um voto de ignorância. E só isso já é o bastante para que nós tenhamos muito cuidado. Cuidado para que não só busquemos subsídios realmente sólidos, como para que tenhamos a decência de fazer de nosso boicote algo sempre em estado provisório, sempre na iminência de ser rompido.

No caso de boicotes para com produções culturais ou intelectuais, essa fragilidade do boicote deve ser ainda mais sobressalente. Embora seja óbvio que um artista possua muito mais liberdade do que, por exemplo, um jornalista que trabalha para uma revista, uma vez que essa revista possui uma linha editorial que busca otimizar sua comercialização ― isso não quer dizer que essa linha editorial possa ser traduzida em produção em série, nem que, dentro dessa linha editorial, uma gama considerável de conteúdos possa ser produzida ou que essa mesma revista não possa produzir algo que destoe até mesmo de sua linha editorial ― ou que ela apenas mude o raio que o parta da linha editorial. Tudo isso é perfeitamente possível de acontecer, e eu não posso simplesmente descartar esse tipo de coisa. Boicotes para com empresas que vendem colírios são uma coisa da qual nós podemos formar um subsídio bastante forte, em especial pois aqui nós realmente estamos falando de algo que possui uma objetividade suficiente para que venhamos a falar de produção em série. Mas se meu boicote é para com jornais, então eu tenho de ter a decência de não generalizar ao infinito e além as razões de meu boicote, pra não dizer que, importante importantíssimo, eu devo possuir um conhecimento de causa anterior, o que, pelo menos, implica dizer que eu devo ter sido um leitor prévio desse jornal antes disso. Não posso sustentar um boicote que se pretenda pelo menos razoável sem que eu possua pelo menos uma bagagem própria pra falar disso. Que Constantino tenha aceitado expandir sua lista para 700 e tantos nomes tendo como base apenas uma manifestação dos artistas, jornalistas e intelectuais em pauta ― uma canetada ou um clique numa lista de oposição ao impeachment ―, só isso já diz muito sobre a maneira como ele sustentou seu boicote.

E já deu pra entender o que acho dessa maneira. A pior possível.