A dificílima concepção do inconcebível.

A PONTE DE EINSTEIN-ROSEN.
Dirceu Villa, disponível aqui.
tempo é desconfortável:
verde-água percutido de ouro,
gaivotas se bicando
por postas de peixe no mercado,
caixas de madeira-balsa em pilhas.
tempo não flui congestionado,
seja no pulso, na estação de trem,
no último momento de relance em que
eu vi seus olhos: não flui.
carros descem a avenida,
pneus são cachoeiras ao ouvido,
luzidio porta-torradas de prata
jaz na rica mesa recém-posta
e palavras holandesas se misturam
a frases francesas no café
e eu tenho uma colher
e a espuma forma uma galáxia
no centro da qual está o tempo,
dobrando-se diante de mim.
velho néon intruso em nosso quarto
pobre, provisório, nesta noite
em que leio os lados de seu corpo;
mãos nas rochas da cidade,
pés no limo de outra sob a sombra
daquela torre vicentina, a sorte
do azul dos olhos, protegido.
pego o tempo na ponta
dos dedos, ou da mente?
se contorce, uma minhoca 
já sem terra, já sem lisa pele
que deslize úmida, cilíndrica.
desconfortável: pouco tempo
em nossas mãos. um sopro.

§

Sem muitas delongas. Ponte de Einstein-Rosen é o termo astrofísico técnico para os chamados buracos de minhoca. Trata-se de uma teoria lançada em 1935 que possui íntima ligação com as descobertas da Teoria da Relatividade. Meus conhecimentos em física são péssimos (sempre foram), mas uma das ideias da Teoria da Relatividade é que, graças ao fato de que o espaço-tempo é curvo (salvo engano resultado da deformação gravitacional causada por corpos extremamente pesados como estrelas), então uma maneira de ligar duas regiões muito distantes seria a partir de um buraco de minhoca. Como as distâncias no universo são uma coisa que, de tão enorme, chega a dar um nó na cabeça só de imaginá-las, a ideia de um buraco de minhoca facilitaria as coisas pois poderíamos fazer viagens rapidíssimo, visto que a ideia do buraco de minhoca é a de um atalho.

É uma ideia fascinante, como de resto muitas coisas envolvendo astrofísica. Mas como seria, literalmente, se viajássemos num buraco de minhoca? Digo: vamos supôr que eu e você estivéssemos numa nave espacial, numa civilização avançada o suficiente, e pimba, entrássemos. O que veríamos? Como nos sentiríamos? É um exercício imaginativo dos bons. Uma viagem, nos dois sentidos do termo. Pois veja o leitor que não se trata bem de algo disparatado uma vez que Einstein, por exemplo, resolveu os problemas da relatividade espacial imaginando-se cavalgando um raio de luz. O conhecimento científico não despreza a imaginação, afinal de contas. Ele como que parte dela para a realidade matemática, teórica, científica, ao passo que o artista faz o contrário. Um exercício imaginativo desses tem muito a que nos ensinar. E nós o fazemos constantemente: imaginarmos situações que não vivemos.

O poema de Dirceu Villa que trago pra vocês parte da ideia dos buracos de minhoca. Ele se embebe de maneira direta de uma avançada concepção astrofísica. Um poeta que também se imiscui de conteúdos científicos avançados recentemente é o Ferreira Gullar de seu mais recente livro, Em alguma parte alguma (2010), onde, por exemplo, ele pergunta a seu gatinho se ele sabe o que são estrelas e dá ao gatinho uma explicação astrofísica detalhada. Todavia, o caso de Dirceu  é um caso muito mais feliz pois ele consegue utilizar da ideia do buraco de minhoca como uma poderosa fonte semântica de seu poema, ao passo que no poema de Gullar nós notamos quando muito um poeta encasquetado com essas realidades cósmicas difíceis de tragar.

Vejamos.

O poema gira em torno do tema: o tempo. Especificamente, a passagem do tempo. Mais especificamente, a questão da memória. É uma conexão muito interessante essa que o poeta faz entre a memória e um buraco de minhoca: nossa experiência atual está distante da experiência passada; na verdade mais do que isso: a experiência passada está inacessível uma vez que já passou; mas a memória funciona como uma espécie de buraco de minhoca que nos faz voltar ao passado de maneira eficiente e rápida (não sendo à toa que a teoria dos buracos de minhoca é usada como uma alternativa teoricamente plausível, para alguns, de viagens no tempo).

O tempo é desconfortável. Na verdade, "tempo". Sem artigo. Isso ajuda a iniciar o poema de maneira mais brusca e a tratar o tempo com uma universalidade maior, no sentido de que ele não é nem determinado nem indeterminado: ele simplesmente é. Trata-se de uma estratégia que T. S. Eliot abordou de maneira muito inventiva no começo de Burnt Norton: lá, a palavra Time aparece sem o artigo the, o que ajuda o poeta a tratar do conceito de tempo de uma maneira mais metafisicamente pura, por assim dizer. No poema de Dirceu, o tempo é desconfortável. Realmente, passar por um buraco de minhoca deve ser muito desconfortável. A imagem que usam pra ilustrar o que seria um buraco de minhoca parte do fato de que o espaço-tempo possui quatro dimensões. Não me pergunte como possui; eu só sei que dizem que possui. Isto posto, imagine que você tenha um lençol dobrado, mas com um espaço considerável entre as dobras. Se você estende o lençol dos dois lados da dobra e põe duas bolas de boliche também dos dois lados da dobra, o que você vê é que a bola de boliche afunda no lençol, o que ilustra o efeito gravitacional de corpos tão pesados quanto por exemplo uma estrela. Só que se você pôs as bolas de boliche juntas, no mesmo alinhamento, só que cada uma de um lado da dobra, então é de se pressupôr que as duas bolas de boliche vão se tocar. E quando elas se tocam, pimba, eis um buraco de minhoca. Bastaria um pequeno toque. Muito fino, não é mesmo? Desconfortável...

Desconfortável, nesse caso, fisicamente. Dirceu Villa trabalha o tempo de uma perspectiva corporal, espacial. É uma conversão dificílima de ser feita, pois nós não temos lá muita noção de como corporificar o tempo ou qualquer conceito de origem metafísica. Tendo em vista a metáfora-guia do buraco de minhoca, Dirceu consegue. Mas ele não o faz de modo gratuito, apenas pra demonstrar que se vislumbrou, que se espantou com alguma informação astrofísica que caiu na sua caixa de correio, à maneira do que Ferreira Gullar faz a torto e a direito em seu livro recente. Dirceu usa essa dimensão corpórea do que o buraco de minhoca metaforiza para trabalhar também corporeamente o tempo.

E é aí que ele consegue aquilo que pra mim beira um milagre, de tão difícil que é. Nos versos seguintes ele colore o tempo. Colorir um poema é muito difícil. Na lírica de língua portuguesa, os poetas não costumam muito colorir seus poemas; os ingleses, por outro lado, adoram. Conosco a coisa é muito rara, e os momentos coloridos de um Mário Quintana, uma Cecília Meireles, um Sosígenes Costa ou uma Adélia Prado (contemporaneamente posso citar nomes como Nydia Bonetti) são praticamente exceções. Há uma concreção auto-evidente na lírica de língua portuguesa: se o poeta fala, sei lá, de uma flor, ele costuma parar aí. Não vai dar uma cor a essa flor. Dirceu Villa é um caso diferente, em grande parte por ser um poeta haurido de poesia inglesa, especificamente Ezra Pound.

Pound coloriu com grande perícia seus poemas. Uma das coisas que mais me encantam em The Cantos é o colorido que Pound dá às suas imagens, reflexo direto de seus anos de formação como poeta imagista. Veja-se, por exemplo, no final do Canto II (uma das minhas passagens preferidas), na tradução do próprio Dirceu Villa (aqui):

       Cinza-oliva bem perto,
              longe, cinza-fumo do desfiladeiro,
       As asas salmão da águia-pescadora
              lançam sombras cinzentas na água,
       A torre como um grande ganso de um só olho
              estica o pescoço sobre o bosque oliva,

Pouquíssimos poetas em língua portuguesa perceberiam, seja lá em relação ao quê Pound estava se referindo ou poetizando a respeito, essa cor cinza-oliva bem perto, esse cinza-fumo do desfiladeiro, a asa salmão etc. E isso pra não dizer no fato de que, caso percebessem alguma cor, não cairiam em minúcias como a de um cinza-oliva; poriam, no máximo, um cinza. Não sei dizer ao certo o que daria respaldo mais prático à minha afirmação, mas posso me arriscar apontando a procedência ibérico-italiana de boa parte de nossa poesia lírica ou então o tamanho que as palavras de nosso idioma possuem. Isto é: nós sabemos que o verso livre é recente, de modo que a poesia até então era metrificada; os metros usados em português são metros ibérico-italianos, de modo que a coisa só raramente ia além das 12 sílabas; e dentro dessas 12 sílabas, é preciso considerar que as palavras de nosso idioma são longas, ou seja, não contam com a concisão inglesa, de modo que dizer que as asas de um pássaro eram salmão implicava pelo menos mais duas sílabas inclusas dentro do verso (o mesmo quanto a dizer que era uma "águia-pescadora" e não uma simples gaivota); assim, temos uma explicação eu julgo bastante sólida pro fato de que os poetas lusófonos se viam como que desestimulados a colorir seus poemas, o que não implica, de modo algum, em menor qualidade por parte de nossa poesia. São apenas características distintas. De todo modo, o uso ostensivo da coloração dentro de um poema faz com que a cena ganhe em concreção e, ao mesmo tempo, que seja mais difícil de ser imaginada, pois não basta simplesmente imaginar uma asa: é preciso imaginar uma asa salmão de uma águia-pescadora. É um instrumento essencialmente prosódico (embora eu tenha a impressão de que mesmo nossos prosadores não são tão cromáticos assim), no sentido de que a dissolução da paisagem no discurso lírico cede lugar à cunhagem de correlatos objetivos.

A imagem que Dirceu usa é a de verde-água percutido de ouro. O poema já começou a mexer suas engrenagens. O leitor pode degustar a imagem apenas no que ela tem de sugestão, ou seja, ele pode imaginar, sei lá, uma piscina verde-água com pontinhos de luz dourada (eu pelo menos acho muito bonito). Dou a ideia dos pontinhos pois percutir é dar pequeninas batidas, por exemplo as percutidas que o médico dá quando vai examinar o ventre. Há uma precisão incrível na escolha do verbo e na escolha das cores. Pois a cor verde-água é uma cor que se liga ao mofo, não de modo absoluto mas pelo menos cromaticamente próxima. Interpreto essa escolha de cores de Dirceu como o início de um processo de reversão temporal: nós temos uma espécie de superfície toda enferrujada sobre a qual, aos poucos, pontinhos dourados vão aparecendo. No início nós tínhamos, sei lá, um relógio de ouro. Com o passar dos anos, ele se enferrujou, se cobriu de musgo, ficou verde. A imagem de Dirceu é o processo reverso disso. Nós estamos entrando no buraco de minhoca. E estamos entrando desde o começo, pois a forma abrupta de Dirceu iniciar seu poema, in media res, indica que nós já estamos lá dentro. E, uma vez que lá estamos, uma pletora de imagens vai passando na nossa frente à medida que o tempo vai regredindo, à medida que as memórias vão nos inundando.

Claro que essa seria uma interpretação simbólica do verde-água percutido de ouro. Verde-água pode ser apenas o verde de uma extensão marítima, e o ouro a luz solar que cai nessa paisagem. A primeira imagem do poema, aliás, é marítima, o que podemos deduzir de quando o poeta se refere às gaivotas se bicando. Se existe alguma razão mais concreta para esse início marítimo, eu desconheço. E, de resto, o leitor não precisa também saber para que possa fruir o poema. O poema vai se relacionar a memórias pessoais do poeta, de modo que uma arqueologia dessas memórias me parece, pelo menos a princípio, sem muita valia. O importante é que o leitor consiga sentir o movimento que o poeta incute, isto é, que o leitor consiga perceber nem tanto o conteúdo das imagens evocadas, mas a maneira como elas se postagem e a maneira como elas se sucedem (pra já adiantar a resposta pro leitor, a meu ver elas se postam de maneira iluminada, pois sempre tem algo as iluminando, e de maneira a realçar sua solidez e tactilidade, e se sucedem de maneira encadeada). Pode parecer loucura eu propôr isso, mas é algo que poucos leitores realmente fazem; muitos parecem que ficam com a macaca quando encontram algo no poema que não entendem e deixam de degustar o poema porque não sabem, ora essa, se aproximar dele de outras formas que podem ser tão proveitosas quanto.

O poeta diz que o tempo não flui congestionado. É o segundo bloco imagético do texto. O tempo desliza que é uma beleza no buraco de minhoca. Parece contradizer o que o poeta disse antes, de que tempo é desconfortável, mas acho que não. Podia ser desconfortável no começo; uma vez que começamos a deslizar, ele flui: não é assim com as memórias, afinal? A primeira vem, nos atordoa, nos deixa meio encucados, e depois o passado deságua com uma facilidade enorme em nossa paz. A contemplação do passado no primeiro bloco imagético talvez represente simbolicamente a contemplação de todo o passado que foi vivido, metaforizado na ideia de mar. Mas pode também ser que o tempo flua e ainda assim seja desconfortável. Uma coisa não impede a outra...

O tempo não flui congestionado: nem na estação de trem, nem no pulso. Os dois pressupõem um método de contagem temporal. A passagem do trem pelo fato de que ela é cronométrica, e o pulso pelo ritmo que as batidas pulsatórias implicam. Esse bloco imagético termina com a mensagem de que o tempo não flui congestionado também "no último momento de relance em que / eu vi seus olhos (...)". A inclusão de alguém dentro do poema, e de maneira tão direta assim, é algo que um poeta como Dirceu, que preza pelo detalhe exato, não poderia deixar de incorrer. Não me parece uma leitura acertada dizer que o "seus" do verso se refere a nós, leitores; se refere a outro alguém que parece que se postou entre nós e o poeta. Uma lembrança tão direta para o poeta que ele só pode se referir com exatidão àquilo: você. É uma passagem comovente. Pois temos uma inclusão tão direta assim num bloco imagético que pressupunha a espera. As peças parecem se encaixar. A passagem do trem + o pulso = estar esperando por alguém querido. Ou, no caso, se despedir dessa pessoa. Ver em relance, e pela última vez, os olhos dela. Não tem como o tempo fluir congestionado numa situação assim. Na verdade, Dirceu é mais atencioso ainda no seu texto: ele termina esse bloco dizendo ": não flui". Os dois-pontos indicam a conclusão de tudo aquilo: que o tempo não flui. Semanticamente nós somos levados a completar "não flui [congestionado]". Mas o poeta foi claro. O tempo simplesmente não flui. Ou porque ele não flui congestionado mesmo ou, o que é um detalhe que só faz da passagem ainda mais comovente, o tempo não flui de maneira alguma: ele para. Ele se petrifica e fica guardado na memória...

O terceiro bloco imagético parece efetuar um recuo. A trama do poema é a de duas pessoas que se conheceram numa viagem, ou viajaram juntas, e tiveram de se separar por alguma razão. O início do terceiro bloco começa falando de carros e pneus que descem e que são como cachoeiras pro ouvido. Como o poema todo vai evocando uma memória específica que está sendo apresentada de maneira reversa, então é normal que todos esses pedaços de imagem possuam uma ligação entre si. No caso, a ideia dos carros descendo a avenida se liga à ideia de um trânsito que flui. O tempo, dizia o bloco anterior, flui. É uma continuidade metafórica que vai nos ajudando a montar o quebra-cabeças, por assim dizer: o poeta parece tirar comparações da cartola mas, quando vamos avançando (na verdade recuando), nós ficamos aptos a entender de onde ele tirou essas coisas.

A cena aqui é a de um delicioso café da manhã. É uma cena feliz. Você pode ver isso por exemplo no porta-torrada de prata luzidio, pode ler isso nas palavras francesas e alemãs se misturando, ou pode ver isso no fato de que o poeta vê uma galáxia sendo dobrada diante dele. Uma galáxia sendo dobrada, eu disse antes, é a ideia de um buraco de minhoca: portanto, ele vê o buraco de minhoca sendo formado naquele instante. É dizer: aquela lembrança é tão vívida e tão esplêndida que, naquele exato instante, uma forte memória estava sendo formada. (Todavia, acho muito difícil pressupormos que o eu daquele exato instante via uma galáxia sendo formada; antes, creio que é mais sólido dizermos que o eu que efetua a viagem memorialística no tempo é que o vê, à maneira de quando, relembrando os últimos instantes que passamos ao lado de alguém, atribuímos um sentido cabalístico a uma frase dita casualmente por um de nós.)

O próximo bloco é um bloco noturno de acentuada sensualidade. O "velho neón intruso" dá a entender que os dois já se conheciam há algum tempo, o que é até, diga-se de passagem, uma maneira muito bonita de incutir essa ideia. O que disse anteriormente sobre uma viagem pode ser lido quando o poeta diz: "mãos nas rochas da cidade, / pés no limo de outra". "Outra" aqui só pode se referir a cidade, o que, unido à torre vicentina logo depois, dá uma imagem clara de uma viagem, pressuponho até que uma viagem pela Europa (também graças à língua francesa e holandesa mais atrás). A sensualidade aqui ela é táctil: o poeta lê os lados do corpo da outra pessoa. Como estamos no escuro (pois, caso contrário, o velho neón não entraria), como estamos num quarto pobre e provisório (ser provisório é um outro indício da viagem), então isso dá um toque de lascívia muito bom ao poema, posto que qualquer pessoa nas mesmas condições leria justamente os lados da outra e não, sei lá, seu corpo. Está escuro, não dá pra ler; eu só vejo, graças ao velho neón que entra, o reflexo das curvas da pessoa amada. É um detalhe besta mas que, dada a maneira com que a cena foi armada, faz com que muitos poetas menos experientes, se porventura chegassem a uma cena assim, não conseguissem traduzir o detalhe do sexo da forma como Dirceu traduziu.

Sob certo sentido, é até o limite de corporeidade a que o poeta pode chegar. Ele nos conta de uma viagem aprazível que fez com um outro alguém, mas isso enquanto ele viaja por um buraco de minhoca, é dizer, pelas memórias. E viajar pelas memórias é um viajar cada vez mais a fundo, cada vez mais ao passado, de maneira que quanto mais avançamos na memória, mais nós regredimos. É quando vem a pergunta:

       pego o tempo na ponta
       dos dedos, ou da mente?

Difícil dizer, não é mesmo? A memória é tão vívida que ela parece estar ali, na sua frente. Para traçar mais um paralelo com Ferreira Gullar, só que dessa vez com um Gullar em boa forma, seria o caso de evocarmos o Gullar de Praia do Caju, em que o poeta vê um menino passando na sua frente e o vai seguindo até o momento em que reconhece aquele garoto, chamado Zeca, grita por ele mas, como o menino já estava muito distante, ele não pôde escutar. O poema começa com:

       Escuta:
       o que passou passou
       e não há força
       capaz de mudar isto.

E termina com:

       O que passou passou.
       Jamais acenderás de novo
       o lume
       do tempo que apagou.

É a meu ver um dos poemas mais belos de Gullar. O tema da memória é um tema importantíssimo na poesia de Gullar, tendo sido trabalhado de forma definitiva em Poema Sujo. Aqui, a distância que existe entre a lembrança tão vívida do menino Zeca (este era um apelido de Gullar na infância) e o homem de agora é uma distância que, por mais que seja pequena, por mais que se resuma à amurada, ainda assim é definitiva.

Dirceu sente a dimensão táctil do tempo. Sua metáfora do buraco de minhoca o ajuda nisso. Ele explicita essa metáfora no final do poema, ao falar de uma minhoca já sem pele que, cilíndrica, se contorce e escorrega. Escapole. Foge. Tudo isso é tênue demais. Temos, de fato, muito pouco tempo em nossas mãos, e o que é desconfortável, ao fim e ao cabo, é isso. "um sopro." Uma maneira forte de terminar o poema, uma maneira significativa. O poema foi crescendo tactilmente, ele foi ganhando em solidez, foi se tornando um corpo coeso, sólido. Mas tudo isso é um nada, basta um sopro pra que se vá. E se foi.