Uma pequena nota sobre Bruno Tolentino.

Creio que li algo do Tolentino pela primeira vez há uns 3, 4 anos atrás. Não me lembro exatamente de que livro era, mas lembro que gostei. Era uma época propensa a gostar de poemas da verve de Tolentino. Traduzindo: gostar de algo, digamos assim, "passadista".

O fato é que de Tolentino eu li só esse isso. Mas eis que, um dia desses, lá estava eu lendo o que pude fuçar na internet. Seus livros ainda estão muito caros mesmo no reino encantado no reino da internet. Mas ainda nutro uma curiosidade grande em conhecer melhor sua obra. Se posso me gabar de pelo menos uma coisa na vida, essa coisa é a de que tenho um estômago de avestruz e consumo de tudo quando o assunto é poesia.

Julgo Tolentino bom no que fez, no que se propôs. Pra me valer da sempre útil seleção disponível no site do Antonio Miranda (aqui), eu poderia citar um poema como:

MECANISMOS

      Havia um azul sereno
      naquele roxo florindo,
      o jardim dava no tempo
      e o tempo passava rindo.

      É tudo de que me lembro.
      Quase nada do que sinto.
      Deu-se a flor ao pensamento
      entre a memória e o instinto.

      O mais é aquilo que invento,
      as músicas que mal digo,
      orvalhos que ficam sendo
      daquele jardim antigo.

Quem ler algo de Cecília Meireles estará em sintonia, pois Cecília é uma forte influência em Tolentino (ele diz isso numa entrevista aí). Para um poema que gira em torno de um tema à moda dum não-sei-bem-dizer, à moda de uma hesitação em conseguir, por assim dizer, expressar o inefável, Tolentino foi na mosca. O poeta passa de uma imagem alegre na primeira estrofe, com essa mescla de cores realmente bem trabalhada (digo bem trabalhada pois nós não só temos uma mescla de cores como uma mescla de cores dinâmica, isto é, o azul está sereno e o roxo, aquele roxo, flore: noutras palavras, as cores estão em movimento, o que é uma percepção duplamente difícil pois não só é difícil colorir um poema como é difícil dar vida às cores); uma imagem alegre na primeira estrofe, eu dizia, graças à mescla de cores e ao jardim que dava o tempo e o tempo que passava rindo; para uma espécie de desolação nas estrofes seguintes. Digo desolação pois enquanto a primeira estrofe possui um ritmo ágil (versos de sete sílabas num ritmo 5+7, 4+7, 4+7 e 5+7), cortado em frases 2+2 de paralelismo visual (o jardim dando no tempo me pareceu novamente uma imagem estática e o tempo passando, é claro, uma imagem dinâmica), ao passo que a segunda possui duas frases curtas e incisivas. A repetição de rimas toantes em "-endo" ao longo dos versos ímpares também é digna de nota pois cria uma persistência ao longo do poema, visto que o poeta fala de um momento que passou e marcou sua memória, mas que, de todo modo, passou, ao passo que nós, leitores, ao lermos o texto, ficamos sempre com um algo na cabeça que, ritmicamente, é esse eco "-endo" ao longo do texto todo (além, claro, das imagens relacionadas a um jardim).

Existe mais o que comentar também, mas esta pretende ser uma nota rápida. Eu poderia indicar o fato de que na primeira estrofe temos uma simples lembrança ("havia aquilo e aquilo"), na segunda nós temos uma constatação ("hoje é só isso") e na última temos o rebotalho ("e o resto é isso aqui"). Mas esse rebotalho possui um quê de impreciso: ou seja, o resto é invenção (especificamente, aquilo que invento, valendo-se de um pronome demonstrativo agora de maneira vaga, ao contrário do aquele no verso 2 e 12), versos mal e mal ditos e reminiscências do momento de prazer original (o orvalho relacionado ao jardim é uma imagem bonita e eficiente, visto que o orvalho é produto de uma noite, de toda uma gestação). A flor do pensamento dando-se entre a memória e o instinto é também uma boa sacada, mesmo porque consegue condensar o poema inteiro em dois únicos versos.

O restante que conheço da obra de Tolentino são alguns artigos e entrevistas esparsas. Polêmicas também, se vier a ser o caso. Embora, pra ser sincero, por elas eu não me interesse nem um pouco. São de uma infelicidade tremenda para ambas as partes. A vergonhosa briguinha entre Tolentino e Augusto de Campos, por exemplo, é pura e simplesmente pestilência e iracúndia no espaço exíguo de um copo d'água. Com exceção, quem sabe, de uns desabafos, ela não trouxe quase nada de válido pra nossa cultura. Tolentino atacou Augusto de maneira destrambelhada e raivosa e Augusto respondeu ancorado em argumentos de autoridade (algo sem dúvidas estranho para um poeta de vanguarda) e numa tentativa vexatória de boicote a Tolentino. O leitor pode ler a respeito num artigo de John Milton, aqui. Não creio que o resultado desse lamentável episódio tenha determinado os rumos da recepção crítica de Tolentino pois, embora Augusto goze (muito merecidamente) de um prestígio no campo tradutório, ele não é uma figura capaz de ditar rumos em nossa literatura, e, de modo geral, o Concretismo ainda é muito mal lido e estudado. Numa perspectiva poética, a briga entre Tolentino e os Concretistas, assim como a briga entre os Concretistas e os Praxistas, nada mais foi que uma briga de gangues. O problema com Tolentino talvez esteja mais em baixo. Ele, por exemplo, até chegou a ser publicado pela Globo em 2002...

E por incrível que pareça isso foi pouco. Será uma incapacidade de se separar a obra do poeta da obra do polemista, das opiniões da pessoa? Bem possível. E isso, eu não preciso nem dizer, é uma pena. Nós perdemos muito com essas polarizações ignorantes.