Crítica. E todos os entraves.


(Polaroid de Tarkovski)


À memória de Barbara Heliodora,
lúcida e apaixonada até o fim da vida.


Façamos um exercício mental. Se 70% dos brasileiros não leu nenhum livro em 2014, pense, desses 30% que leu, quantos chegaram a ler um livro de poesia. Ou então vamos supôr que você topou com alguém na rua e, conversa vai, conversa vem, essa pessoa te diz que leu 100 livros em 2014. Quantos desses 100 são livros de poesia? Se forem 5, já é muito. Pois é ou não é verdade que muitos passam anos e anos sem ler nenhum livro de poesia? Agora vamos pegar essas pessoas que realmente leram lá sua quotazinha de livros de poesia. Quantos estariam dispostos a discutir, com cara feia ou não? Ou então, desses que leram algo de poesia, quantos chegaram a ler poesia contemporânea? E desses que leram poesia contemporânea, quantos se preocupariam com a crítica de poesia contemporânea, ou com uma resenha, uma nota ou pelo menos qualquer coisa que satisfaça o critério de cinco linhas de lero-lero que seja?

Não vou ir muito mais longe do que isso, incluindo perguntas como, sei lá, quantos desses que realmente chegaram a escrever algo no caderninho, buscaram ler outras críticas, supondo, claro, que possam existir dois críticos de poesia no mesmo tempo e espaço. (A pergunta fica ainda mais difícil se incutirmos o critério "contemporâneo".)

O cenário possui tonalidades apocalípticas. Dá a entender que simplesmente não existem leitores de poesia no país. Mas não é pra tanto. É extremamente difícil pensar em como nossa vida não demanda ou não recebe poesia em algum momento ― e não estou falando num sentido mensal ou anual; falo num sentido diário mesmo.

Pense-se, por exemplo, no sucesso de vendas de um livro como Eu me chamo Antônio. Não vou nem entrar nos méritos literários, artísticos, livrescos ou seja lá que raios for do livro. Mas é um sucesso, não é mesmo? Ou então a página de facebook Brasileiríssimos. Aquele troço deve ter milhões de curtidas, e cada postagem tem centenas de milhares de outras curtidas e dezenas de milhares de compartilhamentos. Oras: o que eles fazem lá não é outra coisa que não compartilhar conteúdos com uma eminência poética. As pessoas não curtem a página em busca de prosa. A esse respeito, aliás, me parece que nenhuma outra página que compartilhe prosa artística ou qualquer coisa, digamos assim, emocionalmente veiculada em prosa, sequer chegue perto do sucesso da Brasileiríssimos. As pessoas querem aquelas frases, aquelas charges que façam com que os comentários explodam em corações, querem aquele trecho da música... E por aí vai. Não se trata de dizer que a página compartilha apenas poemas, pois não creio que, num olhar um pouco mais racional acerca da coisa toda, seja o caso; mas as pessoas continuam esperando que a poesia saia daquela cumbuca.

Isso muda muito as coisas. Pois, se considerarmos o conluio histórico e mais do que evidente entre poesia e música ― embora infelizmente desfocado por questões que só podem ser retóricas ("letra de música é poesia?") ―, então podemos observar que o gosto pela poesia é um pouco mais generalizado do que a princípio parece ser. Quantos não leram um livro de poesia no ano, ou mesmo livro nenhum, mas ainda assim possuem aquela letra de música que abala seu coração, e que, no domingo ébrio-de-sempre, entre as 14h e 16h, a publica no seu mural? Naturalmente que é preciso uma certa cautela, pois o conluio entre poesia e música é relativo e não podemos nos esquecer que existe entre ambas as artes um abismo. Assim, a letra de música seria poesia se lida sob determinados ângulos e com determinadas metodologias; em muitos casos, talvez só forçando poderíamos dizer que se trata de um poema, visto que, de resto, a música prescinde da letra, ou seja, ela não precisa necessariamente da letra, embora, também é claro, a partir do momento em que ela decida se valer de uma, nós já não podemos operar uma cisão assim.

Mas deixo tais questões de lado. Onde quero chegar é que as pessoas gostam de poesia, embora pareçam não saber ou quem sabe até mesmo realmente não queiram gostar, como se poesia fosse relacionada àqueles autores chatos que a leitura obrigatória, no período escolar, fornece. Isso também nos leva a considerar que calcularmos o gosto ou a leitura de poesia apenas a partir de dados livrescos talvez esteja um pouco longe da realidade. Com poesia, vai saber, pode muito bem ser uma certa violência que a pensemos apenas dentro do quadrado frio da página impressa. Muitos poemas extrapolam a coisa toda. É perfeitamente possível que eu te diga adorar Drummond sem nunca ter lido um livro mesmo do Drummond. A poesia nos permite esse tipo de coisa. A consideração do gosto pela poesia deve considerar, mais especificamente, um gosto por poemas muito mais do que um gosto por livros.

Além do mais, a poesia é demandada e incide mesmo nos campos mais prosaicos de nossa vida. O arcabouço poético é conveniente. Pode ser usado nas situações mais diversas, no geral pretendidas com fins a tocar o coração, a intimidade de outra pessoa. Pense-se no namorado com a namorada ou no político que quer fragilizar seus eleitores, pense-se, após ligar a TV, na propaganda de sabonete, de fraldas descartáveis, na propaganda comemorativa de dia das mães... Ou então, caso queiramos lançar um olhar em facetas mais formais do fenômeno poético, seria a utilização extensiva de recursos poéticos pelo marketing ― algo nem um pouco absurdo se acoplarmos à nossa concepção de poesia alguns conceitos mais modernos como o da função poética de Roman Jakobson, ou seja, a ideia de que recursos caracterizadamente poéticos podem aparecer em mensagens tidas como não poéticas, como o slogan I like Ike. Um exemplo prático deste último estaria no conluio, estudado por Flora Süssekind, entre a literatura e o meio tecnológico no início do século passado, o que explica a relação dúbia que muitos parnasianos mantinham com a propaganda mesmo (Bastos Tigre, aliás, tinha um escritório de publicidade, e é dele um slogan como "Se é Bayer é bom"). Ainda sobre o caso parnasiano, Emmanuel Santiago, em ensaio publicado pela Revista Nabuco, nº 3 ― que ainda não li, mas que, conhecendo até certo ponto a produção intelectual de Emmanuel e tendo lido o resumo, posso bem imaginar ―, aborda a relação entre os parnasianos e o sistema literário de sua época (sistema literário na concepção de Antonio Candido, como união entre leitores, escritores, editores, livreiros, canais de comunicação, crítico etc). Ou seja: o momento que aparentemente estaria relacionado a um apartamento máximo do artista para com a sociedade, manteve um contato certa maneira orgânico com o desenvolvimento comunicacional de sua época.

Tudo isso posto, como poderemos dizer que a poesia não é lida? Lida, lida, ela até é. Mas as cartas continuam em cima da mesa: formalmente, ou considerando aquele estágio avançado da leitura em que o leitor se quer lido por outros leitores, ou seja, em que passamos a debater, trocar opiniões sobre um livro, a coisa continua extremamente frágil. Na perspectiva crítica, o estado, pra me valer do trocadilho óbvio, é crítico. Se com a crítica literária de maneira geral a coisa não anda bem, com a poesia é ainda pior.

Ainda pior pois não é fácil falar de poesia. Aquele lance de que, quando lemos um livro nós somos transportados para muitas épocas, para a mente de muitas pessoas e tal e coisa e coisa e tal; isso é, digamos assim, um estágio que depende de uma estruturação básica: a estruturação nossa enquanto leitores. E é aí que a poesia entra: ela atua nessa base, ela como que questiona e embaralha nossas próprias bases enquanto leitores. Talvez por isso ela seja tão incômoda.

Assim, eu, enquanto leitor, tenho um domínio da língua, eu sei ler direitinho, sabe como é. Mas aí vem o poema e, com sua construção verbal inventiva, embaralha tudo, e, sei lá, transforma um verbo num substantivo sem pejo algum, ou então se vale das famigeradas "licenças poéticas" (entre aspas pois acho o termo um absurdo). Antes mesmo da gente entrar na nave-mãe-da-leitura, a poesia funde o motor. O mesmo com aspectos imagéticos: o prosador dizer que o fogo era uma espécie de balé vermelho ou coisa do tipo é uma coisa, pois estou num desenvolvimento narrativo e essa imagem, por mais destoante que seja, é incorporada no plano geral do texto. Agora num texto poético a coisa é outra, pois o desenvolvimento narrativo costuma ser o menor possível, e, mesmo que existente, ele é colocado como apenas um elemento entre outros ― o que, em termos jakobsianos, é o mesmo que dizer que todos os elementos constitutivos do texto são equivalentes, estão em pé de igualdade. Pra não dizer nas metáforas inventivas que os poetas se valem, como um João Cabral dizendo que flor é fezes.

Os exemplos são vários. Falar de poesia não é simples. E encontramos até mesmo aqueles que dizem que simplesmente não dá pra falar: a poesia é pessoal demais, ela fala demais da gente mesmo, ela cala fundo demais na nossa alma... Mas veja bem.

Se pudermos aceitar que o poema é um artefato que contém ou dirige determinados sentimentos, e que essa é sua função primordial ou pelo menos a mais evidente, então é forçoso admitir que a dificuldade em se falar sobre poesia é a mesma de se falar sobre a paixão ou qualquer outra emoção forte. Daí que o caminho para passar a gostar de poesia envolve a crença, a princípio ingênua, de que falar sobre o que nos encanta é uma forma de manter o encanto. Claro que isso não ocorre a todos. Para aqueles que eu disse antes, a experiência poética se entranha de tal jeito que, para esses, falar sobre é mais ou menos como contar uma mentira ou no mínimo se estatelar diante de uma impossibilidade. Nada!... Se digo que se trata de uma crença a princípio ingênua, é tendo em mente aquelas crianças que vêm nos contar que viram um besouro desse tamanho no jardim. Mais do que contar o que acabaram de presenciar, é como se em algum lugar dentro de si elas achassem que, contando, também fôssemos capazes de presenciar.

A ingenuidade acaba quando descobrimos que somos.

Pois veja o leitor que, sinceramente!, esta ideia deveria ser um pouco mais generalizada... Falar de poesia pode não ser fácil, mas é gostoso. Na prática, nem os poetas leem assim tanto poesia. Eles continuam encasulados nas torrezinhas de marfim, julgando que só a sua obra poderá salvar a poesia contemporânea da crise em que se encontra (e é uma das coisas mais engraçadas do mundo quando um poeta diz que a poesia está em crise), limitando-se a escutar o que o outro tem a dizer quando se veem na situação certa maneira incômoda de um sarau ― ou então leem apenas autores do passado. Com poesia contemporânea, e com a covardia peculiar do meio literário, o que ocorre é o poeta preocupado apenas com angariar seu rebanhozinho particular de leitores, esquecendo-se que, se a leitura no país vai mal, por conseguinte o barco em que sua poesia também vai mal. Conheço, por exemplo, editores de poesia que dizem receber mais originais de poesia por mês do que livros vendidos. É um absurdo, claro. Pois se com poesia não existem respostas ― ou, pelo menos, pra mim, crítico, não cabe respondê-las, de modo que quando alguém pergunta o que é preciso pra que se escreva um bom poema é muito mais interessante pro crítico responder que não faz a mínima ideia e, quem sabe, se divertir com o poeta se estrepando em tentar descobrir ―; se com poesia não existem respostas ― no máximo dicas, vai saber ―, e se os poetas que hoje dizemos bons parecem que levaram o segredo pra além-túmulo, supondo, claro e de novo, que exista um segredo ― ele pode até existir, mas não quer dizer que sirva pra você, poeta, ou pra época em que você, poeta, vive ―, então os poetas deveriam dar uma atenção um pouco maior pra poesia contemporânea, visto que, mesmo simplificando e dizendo que um bom poeta é um bom poeta apenas por mérito próprio, e que a crítica é um adorno inútil (talvez em certos estágios da produção literária isto seja uma verdade: e este, da escrita literária, provavelmente é), então, poder observar a construção ao vivo e a cores de um bom poeta, de um bom poema e por aí vai, é algo muito instrutivo para o poeta, visto que assim ele se espelha e como que se localiza dentro do coração de sua época, dentro da única possibilidade realmente viva que ele tem de escrever algo que preste: ou seja, vivendo seu tempo.

Mas não é assim que acontece... O poeta é egoísta, não tá nem aí. Quer o status fácil, mais ou menos como o crítico ― meio que aquele crítico que pranteia a morte da crítica e não se esforça nem um pouco em verificar a crítica virtual, ou a tocar o barco nem que seja num rio praticamente seco. Num plano intersubjetivo, é evidente e fático que o crítico acaba ganhando uma espécie de autoridade (o que é decorrência de um trabalho não só dele, como também um trabalho dos editores que porventura lhe respaldem) e que esse relevo possa evoluir para casos clínicos de inflamento de ego. É uma conquista importante (e reconfortante), isso do crítico receber a atenção de leitores, e o crítico deve se importar com esses leitores. Com todos esses leitores, vendo neles potenciais críticos a seu próprio trabalho, potenciais no sentido de que só lhes falta sentar, organizar as ideias e pôr no papel... ou seja, leitores em pé de igualdade com o crítico. Por isso que quando digo se importar, não digo no sentido de como que passar a mão na cabeça. Não sei, aliás, de onde o crítico poderia tirar uma ideia assim... O que se espera do crítico é antes de mais nada sinceridade e transigência. Uma abertura ao diálogo e, ao mesmo tempo, uma transparência sem precedentes. É só depois de completos esses requisitos que o crítico pode oferecer ao leitor sua crítica e, como exporei logo mais, sua argumentação, sua análise. Ao dizer que ele deve se importar com seus leitores, é dizer que ele deve se importar em oferecer algo honesto e que os estimule, algo que, para dizer com André Bazin, estenda o impacto da obra de arte. Não aquelas picuinhas de críticas maldosas que ganham o leitor só pela curiosidade mórbida. A crítica deveria ser um espaço de inteligência e sensibilidade. Por pior que o crítico julgue ser o livro, e por tentador que seja se valer da depreciação para que a caixa acústica das opiniões hoje em dia repercuta-lhe o grito (que pode se dilatar e fugir do controle num estalar de dedos), é melhor que ele guarde sua opinião, visto que, para todos os efeitos, a outra pessoa apenas escreveu um livro que lhe desagradou e nada, absolutamente nada impede que o poeta amanhã escreva algo bom ou mesmo que outra pessoa faça com que o crítico reconsidere o que disse.



§



E então chegamos na crítica. Disse que ela está em estado crítico. Só que tem um problema. João Cezar de Castro Rocha nos diz que, de Gonçalves de Magalhães pra cá, a cada intervalo de uns 20, 30 anos, tem alguém proclamando a morte da crítica. Poderíamos responder, de forma quem sabe maliciosa, que, ora essa!, talvez fosse o caso de considerarmos que nossa crítica sempre esteve morta... ― o que, passado alguns instantes de reflexão, não me parece ser uma boa resposta pois, olhando para trás, podemos de fato notar bons momentos e frutos de nossa crítica.

Ainda com João Cezar de Castro Rocha, é preciso, frente a questões assim, e sempre buscando afastar o que o mesmo crítico chama de "melancolia chique" (aquele lance de dizer que no passado era melhor, quando, se brincar, nem era tanto), pensar de forma paradoxal. Em goianês, é o famoso "tá ruim mas tá bão". A situação está ruim? Tá sim senhor. Mas isso nos leva a simplesmente depôr as armas no chão?

Sei que essas armas se encontram meio que corroídas... Investidas teóricas que datam de mais de século "atacaram" os instrumentos críticos ― ou seja, os instrumentos valorativos, para além, claro, dos próprios instrumentos e questões teóricas. (Um parêntesis mais longo: usei "atacaram" entre aspas pois, mesmo considerando que muitos teóricos realmente trataram a valoração com desdém, como por exemplo Northrop Frye, isso não quer dizer que os argumentos usados sejam como que danosos à própria valoração. Pelo contrário. São valiosíssimos, e, mesmo que teorias assim pressuponham o abandono da valoração, isso não implica necessariamente que suas descobertas não possam precisamente contribuir com a valoração, à guisa, para continuar com Frye, de sua Teoria dos Arquétipos ou dos Modos.) "A crítica é possível?" é uma pergunta que se segue de: "A crítica compensa?"

Tenho outros textos em meu blog onde discuto tais questões (TAG "sobre a crítica", aqui). Não pretendo voltar. O que quero dizer aqui é, antes de mais nada, que a crítica possui alguns princípios. Um deles é o de que a realidade literária é heterogênea, ou seja, ela não pode ser resumida sem perdas ou mesmo contrassensos a fórmulas gerais, a critérios de análise ou seja lá que diabos as pessoas ainda hoje acreditam existirem. (Um parêntesis um pouco mais longo a esse respeito merece ser feito: todo juízo de gosto é subjetivo, mas, no plano intersubjetivo de leitores, que envolve conquistas não só próprias deste plano mas também influxos sociais, econômicos, sociais, raciais, geográficos etc, nós podemos sim falar de critérios objetivos, ou seja, critérios razoavelmente esperáveis de determinados textos; mas esses critérios não são nem de longe absolutos: eles mudam muito, eles são eles próprios debatíveis...) No caso da poesia, é o mesmo que dizer que a poesia pode surgir de muitas formas, pode ter muitos propósitos. O crítico possui lá a sua formação, os seus parâmetros, o seu paladar e por aí vai, o que é mais do que um pré-requisito: é um pressuposto de operacionalidade. Além disso, como dito no parêntesis, a comunidade intersubjetiva de leitores também possui seus parâmetros, métodos etc etc, o que não quer dizer que os do crítico coincidam com os da comunidade, mesmo porque esses da comunidade possuem como característica premente o fato de serem inarticulados, ou seja, não são explícitos, são como que esfumaçados, você tem como colocá-los no papel até determinado ponto e só de maneira muito capenga.

É unindo um e outro, ou, melhor dizendo, de olho num e de olho noutro, que o crítico opera frente à obra, que, como disse, pode vir de muitas maneiras, sendo um dever do crítico, mais do que como que acalentar um arcabouço que se queira o maior possível, estruturar de maneira ainda melhor o seu aparato de leitura a fim de que o crítico consiga se sair bem num número maior possível de terrenos. Assim, por exemplo, de minha parte tenho duas estrelas-guia quando vou ler um poema, ou seja, dois seriam meus critérios padrões de qualidade: o da intensidade e/ou quantidade das fontes semânticas e o da beleza. Este primeiro é o mesmo que dizer que, quanto mais um poema nos dizer, seja com forte intensidade, seja no sentido de "tudo dizer algo", então melhor será este poema, e, para o segundo, valho-me da ideia de Pound de que a beleza é uma aptidão para o propósito. E, a este respeito, como muitíssimo bem comenta Michael Hamburger, como existem muitos propósitos poéticos, então existem, por conseguinte, muitas formas de beleza poética. Só que nenhum dos dois critérios é absoluto, e muitos podem ser problematizados, por assim dizer. Afinal de contas, um poema pode conter passagens deliberadamente fracas e mesmo assim no geral ser bom, bem como pode ter passagens que não querem me dizer absolutamente nada, e eu posso sempre falhar em entender o propósito de um poema e, por conseguinte, sua beleza, bem como o poema pode falhar naquele propósito que enxergo como sendo o dele e ainda assim manter sua beleza, como se ele tivesse um propósito que não consigo visualizar de pronto. São critérios, bem se vê, que não podem em sentido algum serem tomados como objetivos ou válidos para todo o campo poético...

O segundo princípio seria o de que toda crítica ― e toda a crítica, isto é, todo o seu percurso, todos os seus recursos, tudo, tudo nela ― é criticável. O terceiro princípio é o de que a crítica fala de uma obra como ela é e não de como ela deve ser. O quarto princípio é o de que a crítica é argumentativa. Ela não se reduz a um juízo de gosto puro e simples. Ela depende, e de maneira fulcral, estrutural, de uma estruturação argumentativa, e a tal ponto que muito do que consideramos como próprio da crítica não passa de argumentos. Assim, não é que existe como que um consenso crítico a determinado de um autor ― isso é uma simplificação grosseira, posto que, mais exatamente, o que pode existir são vários argumentos que quem sabe coincidam no mesmo ponto final, mas que, dentro de seu percurso argumentativo, se diferem radicalmente, muitas vezes mesmo se negando mutuamente e, outras, nem mesmo pretendendo chegar àquele ponto final ou então chegando ao extremo oposto ponto final etc. Coisa análoga se aplica ao que chamam de "teste do tempo": não é que o tempo chegue e magicamente ponha ordem na casa, mas sim que argumentos, juntos ou às vezes selecionados de acordo com fins visados pelo crítico ou pela época, fazem com que um artista possa ter mais relevância que outro nalgum tempo ou espaço.

Todos esses princípios juntos, coadunados ao de que o juízo de gosto, como disse no parêntesis, é sempre subjetivo, embora, pelo fato desse subjetivo ser sempre posto numa realidade fática, humana e histórico-social maior, ele ao mesmo tempo seja sempre intersubjetivo varejado de aspectos objetivos; tudo isso junto nos leva ao fato de que a crítica está extremamente longe de pretender para si ares absolutos. Crítica é um debate. Uma carga de leituras, na formação de um crítico, não quer dizer absolutamente nada se fizer as vezes de um peso morto. Uma carga de leituras significa, mais exatamente, como que uma aparelhagem de mergulho que permita ao crítico imergir mais fundo na obra de arte ― pois toda crítica é sempre feita de dois momentos: uma interpretação a mais profunda possível da obra de arte para, só depois, e tomando como base aquela especificidade, aquela particularidade daquele texto, emitir um juízo de valor ― e não, depois disso, jogar o texto no enorme mata-moscas de uma tabelinha insípida.

Evidentemente que debater, hoje, não tá fácil. Vivemos num país esbravejado. Mas a crítica precisa resistir. A crítica é um instante de serenidade. Não lhe cabe a postura do crítico arrasador. Isso é uma corruptela do que de fato é a crítica... A crítica é cordial, sensata, humilde. Ela não visa a emissão de uma opinião que caia magicamente e faça com que os leitores lambam as solas dos sapato do crítico. Ela quer que as pessoas debatam a obra, seja porque o crítico gostou da obra, seja porque ele simplesmente acredita nessa coisa chamada "literatura" ― coisa essa que, veja só, depende de outra coisa chamada oxigenação, é dizer, pessoas debatendo e não acatando ordens ou presentes gregos. É daí minha frase em texto passado de que, acima de tudo, antes de tudo, a maior qualidade do leitor de literatura é a esperança. Se o crítico se vale de instrumentos irônicos e ofensivos ― a não ser que esses instrumentos sejam um recurso fundamental na argumentação, o que, no caso da ofensa, me parece impossível ―, então ele está indo contra a índole da crítica. Pode entrar pros anais da história como um crítico ácido, irreverente, sei lá o quê. Mas estará fazendo um mal. O mesmo com o que se chama de a valentia do crítico. A valentia do crítico, se este for o termo, não reside necessariamente no nadar contra a maré e no só emitir uma opinião contrária (pois a esse respeito, o crítico pode nadar contra a maré emitindo o mesmo juízo, embora não, claro, a mesma opinião, a mesma análise) nem reside na dissidência simples, a dissidência em seu estado mais colérico. Não faz sentido que assim seja. Como pode o crítico se engalfinhar com seus pares e deixar ao leitor o papel de espectador, quando, pelo contrário, o objetivo é justamente o de que o leitor também faça parte?



§



Agora que pousamos devidamente em terras críticas, é preciso uma terraplanagem. Lançar um olhar mais detido, mais "prático", quem sabe (entre aspas pois, partindo do princípio que até então fui teórico ou não-prático, isso não implica dizer, de maneira torta mas nem tanto assim, que não fui, ora essa, prático!).

A crítica de poesia, ou, pra falar daquela que me concerne mais de perto, a crítica de poesia contemporânea encontra todos os entraves possíveis. Digo que a crítica de poesia contemporânea me concerne mais de perto mas não é considerando as conclusões que cheguei em texto passado de que, por exemplo, a crítica, entendida como valoração, acerca de artistas do passado não seja possível ou não seja feita. Hoje dou uma resposta contrária: sim, ela é possível e sim, ela é feita. Pois se considerarmos todos os princípios críticos que enumerei antes, então vamos chegando à conclusão de que a crítica é uma espécie de emaranhado, sempre ordenado, claro, embora nunca absolutamente ordenado, de argumentos. Para nós, hoje, isso não implica uma espécie de presente de grego. A tradição não é morta. Dizendo com Gadamer, ela é ativa, ela atua no processo hermenêutico. Sim, posso, por exemplo, valorar Dante, e isso mesmo considerando os juízos que antes batizei de "até-aí" e "depois-disso" (que seriam, por exemplo, valorar Dante com base no que foi feito até Dante e valorar Dante com base no que foi feito depois). Se tiver bons argumentos, que o faça. Mesmo porque, é o que a maior parte dos críticos e mesmo dos estudiosos ― sim, mesmo aqueles estudiosos que se dizem revestir de uma aura puramente científica, ou que enxergam na valoração uma atividade menor ― fazem com frequência, embora, num movimento que não me agrade nem um pouco, posto que danoso, não o explicitem. Isto é, eles valoram mas não deixam clara a valoração. Não argumentam. Isso cria uma zona de coisas pressupostas que é a pior inimiga da crítica, e é o que faz com que conceitos massacrantes de cânone entrem em ação (o famoso "é bom porque sim", "é bom porque todos dizem que é" etc) ou que a valoração literária passe a depender de dependência instâncias consagradas de veiculação (por exemplo a grande imprensa, grandes editoras, poetas laureados, críticos oficiais etc, o que, por conseguinte, extirpa poetas novos sem acesso material a tais instâncias e mesmo poetas do passado cuja obra é relegada às margens)...

Mas a crítica de poesia contemporânea. Criticar é valorar, mas, mais do que isso, é argumentar. O primeiro dos problemas é o de que, considerando aquele exercício mental com que abri meu texto, o número de leitores de poesia contemporânea é absurdamente reduzido. Dá até a impressão de que existem mais poetas do que leitores, o que, claro, não é bem uma realidade... Ou então a impressão de que a poesia contemporânea é um enorme clube de amigos, cheio de tapinhas nas costas e comentários de poetas por poetas. Essa impressão não chega a ser uma característica do nosso tempo ― sempre foi assim. Eu não disse que a poesia é um texto arisco? Pois então. Quem sabe hoje, dado o nível baixo do rio de leitores, ela se valide dado o fato de que, como temos poucos leitores, o que fica são as poças d'água, estagnadas, dos próprios poetas. Vai saber. O ambiente literário não morreu de todo nem está num estágio ainda mais preocupante pois, conquista valiosa da modernidade, muitos poetas se tornaram críticos ou, mais especificamente, estudiosos de literatura. "Mais especificamente" pois não é pelo fato de que você é um acadêmico que você seja exatamente um crítico. Muitos acadêmicos podem ser excelentes estudiosos e péssimos críticos, por exemplo. Como diz Wilson Martins, à crítica é necessária uma sensibilidade, uma argúcia que é ganha com o tempo e não com a leitura atenta e dedicada de uma vasta bibliografia ― o que não quer dizer, é óbvio, que o crítico possa dispensar o estudo sério e pesado. Seja lá que caminho você for seguir (tradução, ensino, crítica, historiografia, análise, sociologia etc), em todos o arcabouço é parecido e com o mesmo peso: estudo, estudo, estudo. No caso da crítica, é só que o crítico, conforme disse, precisa estar pronto pro maior número de terrenos possível, e esta nem sempre é uma exigência feita a nossos acadêmicos (que, quem sabe, como dissera João Adolfo Hansen, estejam se tornando jívagos...), para além, claro, do pressuposto de inteligibilidade que, como sabemos, por questões muitas vezes de ordem prática e pela própria especialização epistemológica propria das ciências, é posto de lado (ou seja, o crítico tem que se fazer entender de forma clara e para o maior número possível de pessoas para que o debate atinja diretamente o maior número de pessoas). Mas não no sentido de saber de tudo um pouquinho; é saber de tudo de maneira satisfatória, pra valer. Em termos absolutos isso é impossível; mas se considerarmos o debate entre leitores e, mais do que a ânsia em saber, a ânsia em aprender, o que era impossibilidade, uma vez dadas as nossas mãos, quem sabe, não é mesmo?

Este o primeiro entrave e o maior deles. Assim como o poeta se ressente de publicar seu texto e ninguém ler, só mesmo seus amigos e sua tia, o crítico também fica com esse peso na consciência. Publica e só o próprio poeta lê, às vezes dando um Ctrl+F pra ir direto na parte que lhe toca. Além disto, o crítico não tem estímulos. A crítica veiculada na imprensa tradicional está uma verdadeira modorra, aparentemente reduzida a um colunismo social que parafraseia o resumo do livro e polvilha estrelinhas em cima do rebento. No caso da poesia a coisa é um pouco mais grave pois resumo ela não tem (a tal da heresia da paráfrase); mas a crítica rasa de poesia também tem seus ardis. Seria o que Luis Dolhnikoff chama de hetero-autocrítica em verso, aquele lance de você citar trechos do poema que aparentemente seriam auto-explicativos. Aí você se limita a isto. Citou: tá bom. Não explica, não argumenta, necas. Claro que esse é um recurso válido da crítica, pois, pra me lembrar de Gertrude Stein, ela dizia que o crítico podia pelo menos citar alguns trechos dos poemas pra que o leitor, ele mesmo, também pudesse lá chegar às suas conclusões. Além do mais, por mais argumentativa e certo modo racional que se queira a crítica, ela sempre deixa escapar um pouco de emotividade (e deve deixar escapar) e às vezes é interessante que ela faça com que o leitor veja a mesma coisa que ela, como se pedisse pro leitor se posicionar a seu lado e olhasse pro mesmo ponto, e ambos, crítico e leitor, contemplassem em silêncio. É um recurso perigoso, pois cai com facilidade na hetero-autocrítica em verso; mas, se acompanhada de um trajeto argumentativo anterior, pode ser uma boa tacada.

E quando me refiro a "um trajeto argumentativo anterior", digo tanto sobre o que o crítico havia dito anteriormente no texto quanto ao que o crítico, em sua trajetória como crítico, disse e o leitor, que acompanha aquele crítico, pode deduzir. Esta, aliás, uma interessantíssima característica da crítica: o leitor acompanhar o crítico, criarem um vínculo. É difícil pensar nalgo assim pois os críticos fixos e com colunas tendem a ser raros ― quer dizer, em parte: se considerarmos os blogs, que são uma modalidade moderna disto... ―, mas é algo que dava ao crítico um enorme ganho, visto que, de resto, a crítica nos veículos de imprensa tradicional se caracteriza por sua limitação de espaço, e o convívio entre o leitor e o crítico, por óbvio, é uma forma esplêndida de ganhar espaço.

Como dizia, a crítica não tem estímulos. A crítica tradicional numa modorra, o crítico de poesia contemporânea pode até pensar no caso da crítica virtual, campo, aliás, promissor, e que permite, entre outros, que aquele convívio entre crítico e leitor seja reatado ― algo que por exemplo a academia, num cerceamento meio estúpido, não permite de jeito maneira. Só que a falta de estímulos segue baixa, uma vez que as chamadas parceiras entre blogs e editoras, talvez o primum mobile da crítica virtual, se restringe a editoras consagradas que quase nunca contemplam blogs de poesia ― o que é absolutamente compreensível, visto que blogs de poesia, né, quase não existem ― e, de resto, possuem elas mesmas um número restrito de obras de poesia em seu catálogo ― número este que se assemelha à condescendência. Não totalmente uma condescendência pois podem ter lá suas vendagens, à guisa do fenômeno Leminski ou do fenômeno Angélica Freitas, um e outro responsáveis por abrir portas a outros poetas, e pois a vendagem literária precisa ser pensada de forma um pouco mais séria que o raciocínio simplista dos números absolutos: ou seja, a poesia pode vender bem dentro do nicho programático que o editor traça.

Mais séria pois veja bem: o editor adota posturas críticas. Isso foi algo que eu devia ter dito lá atrás... É assim: todos nós vamos adotar posturas valorativas em algum momento de nossa leitura. Na hora de comprar um livro, por exemplo, e às vezes até ao colocarmos o livro na parte mais bonita da estante ou não. Não quer dizer que seja um posicionamento crítico, pois, quando digo posicionamento crítico, me refiro a um posicionamento valorativo articulado: ou seja, tem como fim a valoração mas, pra chegar lá, produz um texto metalinguístico (um texto falando de outro texto) que se articule e argumente a respeito. Na verdade, esse critério do "texto metalinguístico" pode ser substituído por algo mais abstrato como "posturas metalinguísticas", o que o caso do editor exemplifica bem. A realidade literária sendo heterogênea, quer dizer que ela é feita de pessoas que possuem lá, cada qual, suas caraminholas na cachola. Essas pessoas fazem parte de muitos nichos literários, como o de poesia romântica ou literatura policial. Cada nicho tem sua organização mínima, suas referências, seus clássicos, seus métodos de análise, seus critérios etc. Nada disso implica dizer, nem de longe, conforme expliquei, em coisa absoluta ou objetiva ou o diabo a quatro. Mas são o suficiente pra criar uma estrutura sólida e maleável que estrutura e permeia o nicho.

Editor não é só quem imprime seu livro. Editor é quem estuda e presta atenção nos vários nichos. Ao planejar um livro, ele tem sempre em vista um ou vários nichos. Ele não joga simplesmente o livro pro alto e busca vender o máximo possível. Tudo precisa ser direcionado. Caso contrário, ele se vê no olho do caos: como vender algo que depende tanto do gosto pessoal como um livro? Ele precisa se apoiar na realidade sociológica da estruturação dos nichos literários. Assim, da aceitação dos textos à sua edição interna (escolha de fonte, espaçamento, imagens ou não etc), capamento, acabamento (brochura, capa-dura), formato, aparato (prefácio, posfácio, notas, escolha da tradução) e por aí vai: tudo isso envolve um posicionamento crítico, valorativo, uma postura metalinguística com fins em adequar o livro ao nicho literário ao mesmo tempo que potencializa a particularidade da obra.

Voltando à vaca fria, falava que o primum mobile da crítica virtual são as parcerias. As grandes editoras possuem pouco espaço pra poesia, mas ainda assim possuem. A crítica até que não está numa posição tão ruim assim... Como diz Lêdo Ivo, a poesia é a puta desdentada. Ela é velha demais, vetusta demais pra que a gente simplesmente a jogue fora. Mesmo porque, como disse, as pessoas leem poesia... Difícil mesmo é o pobre do conto, que pipocou recentemente e não tem a tal da reverência que a poesia ganhou com o passar dos séculos.

Só que dificilmente essas parcerias têm como fim a veiculação poética. Mesmo considerando que a editora dê a liberdade do blogueiro em escolher um livro de poesia ou a própria editora mande, o blogueiro dificilmente vai tratar com interesse aquilo. É como se com poesia se desse aquele lance do remédio: se em dosagem alta, vira veneno. As editoras que realmente se pautam na publicação de poesia, via de regra editoras pequenas e com um trabalho heroico, não costumam se abrir pras parcerias. É provável que isto seja uma falta de planejamento editorial delas; mas não podemos nem de longe como que colocar a culpa nelas. O trabalho humanístico primeiro de toda editora é, ora essa, pagar seus funcionários ou no mínimo se manter de pé. O entrave de que o crítico de poesia contemporânea muito provavelmente vai ter que meter a mão no bolso e comprar o livro de poesia está aí; talvez fosse um dever muito mais do poeta do que da editora o de entrar em contato com o crítico e enviar exemplares; mas, considerando que os leitores de poesia contemporânea são tão raros, a culpa também não é do poeta. Para além, claro, de que o artista precisa se fazer conhecido, o que não é nem um pouco simples pois os meios de veiculação literária (sempre no plural não só por serem muitos, mas por serem também muitos os nichos) são restritos e uma base sólida do sucesso editorial é este. Mas mesmo aqui a culpa não é só do artista; é também dever do crítico estar sempre alerta, com as anteninhas calibradas, e sair à caça.

Como ficamos?

Em maus lençóis. Se o crítico tiver condições modestas, por exemplo, ele dificilmente poderá acompanhar a produção contemporânea. E, mesmo considerando que ele consiga manter uma quota de 3 livros de poesia contemporânea comprados por mês, ele não terá aquele fator surpresa e desafio que são mais do que salutares para seu desenvolvimento pessoal. Trocando em miúdos, ele, muito provavelmente, visto que ele tirou do bolso, pagou, se endividou, só irá em busca dos bons livros, dos que lhe agradam. Mas como podemos construir bons críticos se ele só resenha o que gosta? É preciso que lhe caia no colo aquele livro inesperado, que ele simplesmente terá que criticar sabe-se lá como. Em qualquer atividade humana isso é edificante. Pois aí ele poderá usar um pouco o outro lado de sua moeda da cordialidade, da humildade e da sinceridade: poderá valorar mal mas ainda assim de forma honesta e respeitosa. Muitos poetas poderão fazer um escarcéu depois disso; mas aqui voltamos à lógica de um país esbravejado e de uma crítica esbravejada, preocupada com as frases de efeito e a ironia apocalíptica. A crítica, repito, é um instante de serenidade, e, se o crítico for respeitoso, o poeta também será. A gentileza desarma qualquer coisa, pode crer. E mesmo que não desarme, cabe ao crítico sempre a consciência limpa e uma certa elegância de não se chafurdar numa briga qualquer que não tem razão de ser. Para além, claro, de uma maleabilidade, de um entendimento de que toda crítica é sempre criticável...

Um modo quem sabe interessante de mitigar esse mal, pois, não bastasse tudo o que eu disse, ainda temos que considerar o fato de que, com poesia contemporânea, as chances de você criticar algo que poucos leram é predominante, e que um dos aspectos mais evidentes de você, crítico de poesia contemporânea, ter poucos leitores é o fator óbvio de que só uns loucos de pedra leriam o que você disse a respeito de um livro que quem sabe eles não leram, ou que, numa hipótese ainda mais maluca, leram; um modo quem sabe interessante seja o de comentar poemas individuais ao invés de livros inteiros. Assim você pode citar o poema na íntegra e o leitor ficar a par. Não posso mentir que a ideia me parece muito promissora, embora possua o problema ― considerando que o crítico não tem nenhum outro livro do poeta consigo, mas só aquele poema ou um conjunto de poemas disponível virtualmente ― de que o crítico limite seu espaço de voo, de análise etc. Se o crítico estiver aberto a críticas (e ele tem de estar), e se ele adotar uma metodologia que deixe claro que é aquele poema que ele toma como base (o que não o isenta de críticas), ele pode se sair bem. Caso ele já tenha lido algo físico do poeta, o caminho continua igualmente válido, com a diferença de que agora o crítico ampliou seus horizontes.

Mas a possibilidade de que se critique um livro físico segue válida, embora mais problemática pelo que apontei anteriormente ― o leitor da crítica pode não ter lido o livro, o que é uma realidade pra maior parte das notas críticas (muitos leitores, aliás, procuram a crítica querendo saber aonde investir seu dinheirinho) mas que, no caso da poesia, visto que ela não conta com instrumentos como o do resumo do livro e visto que ela enfrenta uma resistência e possui uma ordenação mais propícia ao poema individual do que ao conjunto, se torna um pedregulho no sapato. O que regirá o sucesso aqui será a capacidade do crítico de captar a particularidade da obra e, numa estrutura argumentativa, valorá-la de acordo com parâmetros afins. É dizer: o crítico capta a proposta da obra, verdade da obra, digamos assim (embora também diga que essa verdade não é algo imanente da obra, e também depende sempre da argumentação do crítico, visto que essa suposta verdade muda de crítico pra crítico, de espaço pra espaço, de tempo em tempo etc); capta a verdade e a põe ao lado de outras obras que, segundo o crítico, sejam análogas, visto que, de resto, a crítica possui basicamente um funcionamento analógico, comparativo ― mesmo quando ela lança hipóteses é assim que a coisa funciona. Não adianta ela colocar lado a lado duas obras de propostas ou verdades distintas. Não podemos pedir de uma obra que ela ofereça o que ela não tem como oferecer...

Esta particularização se fará acompanhar também de um texto que busque ser o mais certeiro possível. Só que, ao dizer certeiro, não quero dizer nem tanto em relação ao tiro na mosca (como em texto passado dei a entender); refiro-me, dentro da argumentação da crítica, a construção de uma estrutura coesa, bem argumentada em suma, que faça com que a concepção do crítico e sua valoração consigam se atar e se ater da forma mais próxima possível ao que a obra realmente é ou, mais precisamente, o que, graças ao que o crítico nos disse e nos forneceu de instrumentos, podemos ver e averiguar como de fato sendo. Pois a respeito da valoração, a boa valoração não é aquela à maneira de um balde de tinta azul ou vermelha lançado sobre o texto, e sim aquela que consegue seguir de perto o desenho, englobando a obra como um todo e se imiscuindo em suas engrenagens. A boa valoração não é pensada numa perspectiva externa, mas sempre numa perspectiva interna.

Por fim, há ainda a questão da crítica de rodapé. É um gênero que aparentemente estaria em desuso, mas, se notarmos o que me referi sobre o fato da crítica na imprensa tradicional se avizinhar do colunismo social (espaço reduzido...), então talvez seja mais sensato notar que ela não morreu tanto assim. Em tempos de estiagem sua sementinha sempre volta a ser evidente. Como proceder? É possível escrever uma boa crítica de rodapé?

Me parece que a crítica de rodapé está sempre fadada ao insucesso. Ela sempre será problemática ― problemática no sentido interno, ou seja, nela sempre faltará alguma coisa, ela nunca terá espaço suficiente para se estruturar. Se as críticas voltadas ao poema e ao livro se estruturam cada qual da sua maneira, aquela com um enfoque individual mais detalhado e esta com uma visão mais panorâmica e talvez mais redutora, embora nem por isso menos fulcral, posto que está sempre pinçando particularidades e estabelecendo relações; se assim é com estas, com  crítica de rodapé nós temos o início de um esboço, um pequeno texto cujo valor, mais do que a notação casual, deveria ser o da instigação. Mas, em todo caso,  crítica de rodapé é uma realidade extrema. Uma maneira interessante de proceder com ela seria se, considerando que a crítica no seu todo é um caminho que dá a algum lugar, e, como vimos, o que conta na crítica é muito mais o caminho do que o aonde ela realmente chegou, então a crítica de rodapé como que saltitaria ao longo desse caminho, sendo uma espécie de versão curta e lacunar da crítica maior. Não só isso: dado que algumas das aleias, algumas das sendas da crítica só podem ser alcançada em definitivo ou a contento graças a uma argumentação prévia mínima, a crítica de rodapé é também uma versão limitada. Isso a obriga a valer-se de termos genéricos, o que é um enorme problema visto que a crítica não se dá nem nunca se deu bem com generalidades. O caminho da crítica é o inverso. Então repito a pergunta: como proceder? ― Eu digo: procederemos mal. Mas procederemos. Se o instrumental do crítico de rodapé for o dos jargões, que ele saiba renová-los de maneira hábil e precisa, procurando, pelo menos, mitigar o resultado final. Assim, da análise feita acerca do texto (e não preciso nem dizer que a análise deve ser feita com o mesmo rigor de uma crítica normal), que prossiga com uma análise ainda mais depurada das várias características criticáveis daquele texto a fim de que consiga chegar no aspecto primordial, no xis da questão, por assim dizer, e dê preferência a incidir neste xis da questão quando for escrever a crítica de rodapé. Isto poderia levá-lo ao como que exagero de suas críticas de rodapé serem tiras, pequeninas notas mentais que o crítico teve, o que, em absoluto, não é um caminho desinteressante, embora deva ser tratado com cuidado, ou seja, o crítico de rodapé deve não só saber como usar os jargões certos e da forma certa, e de preferência sempre mesclados às pinceladas também certas da obra de arte; deve não só saber escolher a característica criticável certa; deve também saber sair dessa mesma característica criticável certa ou, venha a ser o caso, permanecer nela.



§



Apesar de todos estes entraves, a crítica deve seguir firme. Não podemos nos valer dos entraves como desculpa. Por difícil que esteja a situação, é preciso não quietar o faixo. O fim de linha da crítica é o debate. Se, dado o número tão baixo de leitores dispostos a discutir ou sair um pouquinho de seus casulos, esse fim de linha pareça não chegar nunca, e dê a impressão de nunca vir a chegar, a não ser que tomemos o atalho desonesto da polêmica simples (a polêmica esbravecida), isso não chega necessariamente a anular o caminho percorrido. Uma vez que a crítica se cala, mesmo a crítica ruim, então se abre espaço para que as formas inarticuladas de compreensão do fenômeno literário entrem em cena. Isso incide diretamente numa não-oxigenação da concepção literária, isso incide diretamente no estancamento do debate. Deixamos a poesia para que seja pensada por estâncias conservadoras que, sem espanto algum, estão próximas do jogo de poder de nossa sociedade, o que explica uma concepção de cânone pautada nas exclusões muitas das vezes guiadas não só por critérios estéticos ― a esse respeito, cumpre lembrar, com Otto Maria Carpeaux, que o estético é só uma parte do fenômeno literário ― mas também critérios raciais, econômicos, sociais, de gênero, geográficos etc etc.

Assim sendo, segue passeio. Por vezes o crítico terá a sensação de que estará falando sozinho, ou de que poderia muito bem estar fazendo seja lá o quê que não criticando de maneira independente. A pergunta até surgirá: "o que você está ganhando com isso?"

Ora essa. A resposta é óbvia: eu não gosto de poesia? Não amo poesia? Não nutro dentro de mim a esperança de que amanhã a poesia seja mais do que ela é hoje, a esperança de que a poesia pode melhorar o mundo? Pois então. Os seus passos são o bastante. É triste que sejam. Mas desistir, e isso você sabe muito bem, nunca foi uma opção.