Vale a pena ler livros novos.





Quero orbitar em torno do texto de José Pacheco Pereira, Vale a pena ler livros novos?, no jornal Público de 15/11/14, aqui. Que eu tenha suprimido a interrogação já mostra aonde quero chegar: sim, vale sim ler livros novos.

Aqui é importante colocar alguns pingos nos i's para que não caiamos em injustiças. Por livros novos e livros velhos Pacheco Pereira se refere a literatura contemporânea e literatura clássica. Mais respectivamente a uma espécie de dicotomia extremista: ou seja, de só se ler um ou só se ler outro. É o que ele diz no último parágrafo, com esse "ler por sistema livros novos" e "E por isso escolho não ler, por regra, livros novos" (grifos meus). É também preciso pontuar que temos a opinião de um leitor comum, o que pode ser visto em "e tendo nós que ler outras coisas, sejam manuais escolares, sejam livros técnicos, sejam memórias, sejam livros de actualidade, o tempo não chega." Tudo isso possui um pé muito pessoal, e desejo e não desejo demover o autor do que ele dissera. Não desejo pois, claro, ler é uma escolha pessoal e você faz o que quiser das suas leituras, da sua vida, desde que não roube de novo meu celular no ônibus ou pise com o pé sujo no tapete. Além do fato de que este é um blog com menos de 23 mil visitas; estou escrevendo esse texto para as muriçocas que me espezinham. E desejo pois, embora respeite a opção do autor, ou de qualquer pessoa que se simpatize com sua ideia, vamos lá: estamos debatendo. Ainda quero crer na possibilidade de, porque não?, eu possa te convencer de algumas coisas, ou o contrário. Qual o problema com isso? Desde quando isso se tornou uma coisa tão ofensiva?

Voltando às citações que fiz, em especial o que disse sobre ser a opinião de um leitor comum, devo atentar ao fato de que, por exemplo, no sexto parágrafo ele contrapõe uma literatura light a uma literatura mais séria. Todavia, quando falo em leitor comum, não estou falando só do zumbi best seller. Não sei se você sabia, mas um leitor comum pode ser também um leitor de literatura clássica. Pois é, é verdade. O leitor comum a que me refiro é o leitor que basicamente encara o livro e, por mais que ele até consiga extrair alguma coisa do que lê, ele não consegue traduzir isso muito bem em aptidão, em ferramentas para que se torne um leitor melhor num sentido mais amplo. Ele parece que se torna um bom leitor do que acabou de ler (se é que dá pra dizer "bom") ― pro resto, todavia, inclusive pros próprios best sellers que ele tanto abomina, ele continua sendo um leitor não raro preconceituoso e cheio de cacoetes. Você consegue ver bem essa faceta do leitor comum quando pede pra ele explicar porque um livro é bom ou porque é ruim. Ele não consegue. Fica apenas nas generalidades, pois sua máquina de leitura é genérica, quando tão importante quanto o que um livro tem a nos dizer é o que temos a dizer sobre um livro.

O começo do texto de Pacheco Pereira é mais ou menos uma rememoração de um texto de Linda Holmes, The Sad, Beautiful Fact That We're All Going To Miss Almost Everything (NPR, 18/04/11), em que a autora nos diz que, lendo dois livros por semana e começando aos 15 anos, teremos lido 6500 livros ao longo da vida. Daí a necessidade de sermos seletivos, pois, para quem gosta de ler, 6500 livros não é tanta coisa assim ― ainda mais para uma vida toda. Esta a raiz do texto de Pacheco Pereira: se somos finitos e só vamos ler algo em torno disso (para o autor, 4000-5000), então pra quê ler livros novos, se eles representam um risco e eu posso perder meu tempo, posso ter de tirar um livro bom e "já garantido" desse vagão-vida?

O argumento-base não é ruim. Sim, temos de ser seletivos. Sim, perder tempo lendo um livro ruim é pior que se entrevar. O sentimento borgeano de que, sem um critério seletivo de qualidade, estaremos confinados quando muito num dos hexágonos da Biblioteca de Babel é aterrador. Mas vamos ser um pouco cautelosos nessa hora. A questão não é ler o máximo possível. Esqueçamos um pouco aquele fantasma dos 1001 livros pra ler antes de morrer, ou que o valha. Muitas vezes, quando entramos no mundo mágico da literatura, esse tipo de cifra começa a rondar nossa mente e nos atazana, visto que ela talvez seja um corolário inconsciente do ler mais e mais para se diferenciar da ralé alienada que "não lê" (entre aspas pois muitas vezes essa ralé lê mais do que o fulano de tal, se considerarmos que, bem, a leitura jornalística, por exemplo, é leitura). Vamos com calma. Será que é mesmo tão necessário circunscrever o número-aproximado de livros que leremos em nossa vida toda? Pode até ser bom pra que tenhamos uma ideia, mas deveria ser apenas pra isso. A partir do momento em que Pacheco Pereira toma esse número-hipotético e o usa como legitimador da não-leitura de livros novos, problemas surgem. Supondo lêssemos esses 6500 livros, vou perguntar pra você com meus olhos fixos nos seus: quantos livros você realmente leu?, quantos guardou pra vida toda?

Além do mais, não é mais importante uma boa leitura ― a boa leitura entendida precisamente como sendo uma leitura que se desdobra e, sozinha, gera muitas outras? Aqui nós poderíamos retornar a Pacheco Pereira, de que os livros clássicos podem nos fornecer com mais garantia boas leituras ― e vejam bem, não estou dizendo que não seja assim! O que quero dizer é que não são só os clássicos. Quando falo de boa leitura, não estou falando de algo que está incrustado naquele livro em específico, como uma espécie de esmeralda única; falo muito mais de técnicas de leitura, de se tornar um bom leitor de maneira geral e não um bom leitor daquele livro em específico, ou mesmo de 4000, 5000, 6500 livros.

E vejam que eu nem comecei. Pois a dicotomia entre livros velhos e novos é problemática. O que é o contemporâneo?, poderíamos nos perguntar. Se quiséssemos apenas pousar em Agamben, aí a história é muito outra e a relação é mais complexa. O contemporâneo é o intempestivo, é quem sente um certo desconforto em ser contemporâneo de seu próprio tempo, por mais que o seja. É quem está e não está nas costelas fraturadas de sua Época. Esta metáfora Agamben retirou de um poema de Óssip Mandelstam, onde, para o poeta russo, sua Época era sua Fera com as costelas quebradas, e ele, o eu lírico, era a cura e a causa da fratura. Para Agamben, nós, contemporâneos, somos a mesma coisa com nossa Época: inclusos e não inclusos, a peça que se encaixa e a peça que arrebenta.

Na verdade, Agamben fornece, além desta, uma série de metáforas para o que seria o contemporâneo, entre elas a de que o contemporâneo é o que se distancia de seu tempo, mais ou menos como, ao olharmos para o céu noturno, enxergamos uma espécie de fotografia do passado ― ou seja, a luz não chegou até nossos olhos, mas um dia ela há de chegar (daí Agamben chamar o contemporâneo de o mais arcaico dos tempos, ou seja, o mais próximo da origem). Ser contemporâneo é enxergar o escuro e ver a luz que está vindo em nossa direção ― é saber que ela virá. O passado é quando a luz já chegou ou está mais próxima; por isso que a relação entre o contemporâneo e o passado, entre o novo e o velho não é apenas a de um-depois-do-outro. Algumas coisas acerca do passado, diz Agamben citando Benjamin, só podem ser compreendidas na perspectiva de contemporâneos, como se o contemporâneo lançasse uma sombra sobre o passado e, graças a essa sombra, pudéssemos entender o que passou. Pois, a respeito do escuro, se fecharmos os olhos, a escuridão que vemos é produzida por células de nosso olho, o que, metaforicamente falando, quer dizer que enquanto contemporâneos, além de captar as luzes de nossa Época, nós também produzimos sombra.

Como você pode ver, é tudo muito complexo, é tudo muito dinâmico. A dicotomia que o autor apresenta, se entendermos que o contemporâneo está ligado ao passado e, portanto, alguém não pode olhar o passado de forma tão isenta assim, perde muito sua razão de ser. E só aqui nós já temos um forte argumento em prol de ler livros novos: eles são tão intempestivos como nós. Dizem o que estamos vivenciando. Claro que não de for a direta, pois livros não nos fazem mudar um estado de coisas. Livros nos fazem mudar um estado de coisa. Entenderam a diferença? É mais ou menos o que o Quintana disse: livros não mudam o mundo, mas mudam pessoas que mudam o mundo. Isso quer dizer basicamente que a leitura não é voltada apenas para a leitura daquele livro e pronto, acabou. Não é só voltada para a aquisição de técnicas interpretativas para um só terreno. É algo mais amplo. Isto explica a razão de que ler um livro velho é também ler seu próprio tempo, embora aqui seja importantíssimo ter um cuidado redobrado. O fato de livros velhos poderem falar sobre nosso tempo é tanto em decorrência de sua universalidade ou do fato de que o que eles falam não foi, digamos assim, resolvido de todo (ou de que se trata de algo que, pra ficarmos com Gidè [a propósito, feliz aniversário], precisa sempre ser repetido), quanto pelo fato de que, como disse com Agamben, enquanto contemporâneos nós lançamos luzes sobre o passado e o passado lança luzes sobre nós. Só que o nó não acaba aí. É tentador pensar que ele acaba; todavia, é preciso que a ponta seja reatada e que também leiamos livros novos para que consigamos ver não uma luz morta, mas uma luz viva. Essa a grande diferença. O contemporâneo não é o que fica parado e brinca de catar lastros históricos ou entoar uma espécie de louvor ao estático. O contemporâneo é o que se mexe, é o que dança, é o que baila ― o contemporâneo é uma flecha rodopiando no olho de uma nebulosa.

Isto posto, devo também lembrar que o argumento de Pacheco Pereira é fraco no geral pois ele possui uma relação insustentável com esses tais livros velhos. Uma espécie de apologia do cordeirinho manso. Pois vejam que o leitor de literatura contemporânea é o contrário ― é um corajoso, um aventureiro. Um inconsequente? Não nego isso. Não nego o argumento central de Pacheco Pereira de que ele se arrisca. Sim, é correto. Mas a pergunta que faço é: ler não possui em grande parte justamente esse risco? Essa fixação pela "reflexão certa", pelo "meterei minha mão nessa cumbuca que aí tem conhecimento"... Isso não está fazendo justamente o contrário? Desde quando o conhecimento é tão certeiro assim? Não estamos simplificando demais ao reduzir a dificuldade do conhecimento apenas ao, digamos, deciframento textual e não à caça e à descoberta?

As perguntas que devem ser feitas quando ouvimos falar em livros clássicos são: 1) estamos falando no singular ou no plural (o cânone ou os cânones)?; 2) quem escreve o cânone?

As duas são demolidoras. E é entendendo o funcionamento de uma e de outra que questionamos essa visão de encontrar na literatura clássica um refúgio certo para o gozo edificante. Não existe apenas um cânone. Existem vários e com vários funcionamentos. Você pode até argumentar de que no geral eles não mudam tanto ― mas me parece que se trata ou de uma leitura superficial, ou de uma conclusão chegada a partir de um espaço amostral pequeno. Um bom cânone literário não é apenas o sair catando autores bons com uma pinça e reuni-los num cercadinho, no que você iria dizer a todos que querem dele participar: "seja bom e só então seja bem-vindo". As coisas não são tão simples assim, ora essa. Esse modelo de cânone, seletivo, mera reunião, café literário ou qualquer outra imagem que pinte uma espécie de confraternização de gênios, é um modelo ingênuo e não muito funcional ― é um modelo fadado a estar ultrapassado logo, logo ― é um modelo natimorto, em suma. O bom cânone possui um funcionamento inteligente. Ele é uma estrutura em aberto que está preparada para incorporar futuras inclusões ― tanto de gente do passado quanto de gente do presente. Ele tem um porquê, ele tem engrenagens que fazem com que ele ande sozinho. É isso que move o cânone de um Harold Bloom, graças a peças como a da angústia da influência, ou o paideuma de um Pound, com o lance de selecionar o que ainda continua vivo em nossa cultura. Este último, o paideuma poundiano, é um ótimo exemplo pois não só Pound deixa claro que aquelas escolhas são dele, Pound, como nós podemos observar como o paideuma de Pound foi depois incorporado, por exemplo, pela vanguarda concreta, que criou um paideuma seu ― e anos depois, noutro exemplo, incorporado por Haroldo de Campos, quando este criticou o modelo canônico de Antonio Candido (calcado em peças como a da literatura enquanto sistema) apregoando uma história da literatura sincrônica e não diacrônica. Algo assim não aconteceria com um cânone-catar-feijão: afinal de contas, como escolhas pessoais podem ser incorporadas por outrem sem implicar com isso um aceitamento tácito? É simples: o que se incorporou não foi a superfície nem uma lista de nomes, mas um funcionamento, uma ideia.

O que deve ser entendido é que cânones possuem um fundo crítico. São resultado de uma profunda visão crítica ao mesmo tempo que vasta. E a crítica, o que Kant nos ensinou muito bem, está em constante estado de crise, pois não existe uma autoridade estética ou que o valha. Um juízo estético é um juízo particular, subjetivo ― o que existe são argumentos. O que existe é um debate. Portanto, nossos modelos críticos mudam. Portanto, os cânones mudam.

Você pode pensar que, embora mudem, não mudam tanto, o que é visto no quarto parágrafo de Pacheco Pereira, ao falar dos autores esquecidos que seriam exceções a regra. Pode até ser que em termos absolutos seja assim mesmo. Pode até ser. Mas é uma leitura superficial da coisa toda, advinda de uma concepção de cânone-catar-feijão. Num cânone bom, isto é, firmemente posto a partir de uma atividade crítica consistente e constante, a não-inclusão de um autor pode tanto ser um lapso do feitor do cânone que o cânone pode muito bem incorporar (pois é uma característica do bom cânone, como disse, o fato de ser aberto e não só poder permitir que autores do passado, e esquecidos, entrem sem alterar o cânone ou torná-lo numa colcha de retalhos insípida, como também lançar vistas ao presente e ao futuro, servindo, portanto, como modelo crítico para a própria literatura contemporânea); num cânone pensado, a não-inclusão de um autor também pode denunciar seus problemas internos, pode ser resultado de um defeito maior de sua constituição interna. Um lapso mais profundo do que se imagina ― e que, se usarmos apenas a resposta reparadora de Pacheco Pereira, de que, nessa estrutura defeituosa, basta colocar a peça que esquecemos e seguir viagem, estaremos por conseguinte relevando fatores, porque não pensar?, de exclusão social, racial, de gênero, de classe etc que esse cânone pode muito bem ostentar (ato que nos representará não como reparadores de incorreções históricas, mas sim como eternos enxugadores de gelo ou condescendentes hipócritas).

Essa correlação do cânone à realidade social é abordada de forma torta pelo autor no oitavo parágrafo. Um parágrafo meio estranho ― afinal de contas, quem realmente acha que o passado é mais "doméstico"? Estou totalmente ao lado do autor quando rechaça uma leitura tão simplista da História, mas vou além. É comum que tendamos a colocar de lado partes de um texto que remetam à realidade social. Um erro grosseiro, muitas vezes legitimado pela carta coringa da universalidade. Alto lá, ora essa. O que é essa tal universalidade? Seria tão somente aspectos que não mudam de sociedade a sociedade? A discriminação racial, por exemplo. Até que ponto ela não seria um tema universal, à guisa da alma humana, do amor, da morte etc etc? E mesmo partindo do ponto de vista que ela seria um aspecto pontual ― ou, pra mudarmos o exemplo, tomemos como base a descrição do sistema jurídico austro-húngaro nos textos kafkianos, que, para Richard Posner, é um detalhe irrelevante para que compreendamos ou apreciemos a obra ― até que ponto podemos dizer que é algo que deve ser posto de lado frente a "questões maiores"? É nosso dever, enquanto leitores, perseguir só o universal? Isso não seria uma desculpa para que busquemos apenas o que é afim a nossa plácida cúpula de percepção de mundo? Esses problemas que apontei, como a discriminação racial ou a questão escravocrata na poesia dum Castro Alves ― eles são resolvidos de forma tão simplista assim? Ou eles jogam seus tentáculos e deixam um ressaibo nos noticiários do meio-dia?

Acho que já deu pra entender onde quero chegar.

No começo do terceiro parágrafo, o autor diz: "Já uma vez coloquei essa pergunta de modo biográfico, dizendo que, por regra, não lia nada que não tivesse aguentado dez, quinze anos, de 'necessidade de leitura'." Pacheco Pereira não deixa claro o que entende por "necessidade de leitura", mas creio que posso dizer com segurança que ele está se referindo a uma terraplanagem crítica. Aqui existe um problema meio que flagrante. Pois quem forneceria esse aval? Quem daria o sinal de positivo, dizendo: "o caminho é seguro"?

Temos duas figuras basicamente. A primeira é a do crítico que já leu os livros velhos todos, ou possui uma base muito, mas muito boa, e que pode se dar ao luxo de se arriscar com os livros novos. Daqui já desmoronamos o idílio que Pacheco Pereira propõe ao leitor: esse crítico é melhor do que nós. Estamos mais ou menos assinando um atestado de incompetência. Cabe se perguntar o porquê dele ser melhor, no que chegaríamos, com Pacheco Pereira, à resposta de que é porque ele possui uma base muito boa nos clássicos e, portanto, pode justamente se dar ao luxo com os novos. Como se pode ter percebido até aqui, tal não é minha posição; considerando que seja um leitor melhor do que nós, é tanto por sua bagagem quanto (e esse "quanto" é importante pois ponho com a mesma pesagem) pelo fato de se arriscar, de colocar a aparelhagem interpretativa que adquiriu à prova. E esse pôr à prova pode tanto ser ligado ao que Pacheco Pereira disse no quinto parágrafo, citando Virginia Woolf de que ler livros novos é ler livros "virgens" criticamente (e o próprio Pacheco Pereira reconheceu que é um bom argumento), o que quer dizer que esse leitor bem fomentado com literatura clássica se veria numa selva escura não só na perspectiva do "escolha-um-livro-pra-ler", mas também na perspectiva do "inaugure-um-edifício" (e convenhamos que esse segundo desafio é muito maior do que o primeiro ― e Pacheco Pereira só fala do primeiro); esse pôr à prova, todavia, se liga também ao fato de que ler precisa ser uma gangorra, precisa ter um pouco de risco e vou até mais além ― precisa ser contraposto a resultados ruins para que justamente consigamos não só avaliar ainda mais e melhor o que já lemos e consideramos bom, como pra que tenhamos uma visão realista de qualquer período literário, dado que a imensa massa de escritores de qualquer tempo é precisamente mediana pra ruim.

Já a segunda figura implica uma imagem estarrecedora pra alguns: a do crítico que talvez não seja um leitor tão acostumado com clássicos. Um leitor sem tanto fomento. Se brincar, sem nem mesmo tanto fomento quanto a gente, que estamos mais perto de passar a linha de chegada dos 6500 livros. Isso faria, por conseguinte, desse leitor um leitor pior? ― Claro que se ele possuísse mais tempo pra ler, tanto melhor ele seria. Mas, mais uma vez, insisto que ler envolve uma aparelhagem mais ampla. Esse leitor pode até ter uma carga de leitura menor do que a sua e a minha, mas ele pode ser um leitor melhor do que nós dois juntos. E esse mesmo leitor com menos bagagem mas mais habilidades ― esse mesmo leitor pode ser aquele que fará a terraplanagem dos livros novos que um dia vão se tornar velhos. São esses leitores muitas das vezes jovens e corajosos que darão a cara a tapa e, enquanto todos estão no conforto de suas estantes abarrotadas de clássicos (temerosos de quebrar o encanto de sua alegoria da caverna), serão esses leitores que estarão na faina de construir pontes e faróis, de mapear o terreno pantanoso da literatura contemporânea. Afinal de contas, clássicos surgem graças ao esforço de grandes autores, é verdade ― mas não sem o esforço de grandes críticos também.

Isso posto, sim, vale a pena ler livros novos. Eles são necessários pra que você veja melhor a própria literatura clássica que apregoa. Pra não dizer no fato de ― por quê não? ― representarem uma aventura fascinante e um desafio poderosíssimo para que testemos nossas habilidades enquanto leitores. Não enquanto cordeirinhos mansos, que lerão tudo como tratores ― mais ou menos os mesmos tratores que aceitam qualquer tralha que a Grande Mídia ou qualquer estância de opressão metafísica ponha à frente. Ler, quanto mais desenvolvemos o verbo, é colocar uma leitura à prova de outras leituras. É debater. É ser ativo muito mais do que ser passivo. Ser dinâmico. Isso nos leva progressivamente ao fato de que mesmo quando encaramos um clássico, caso queiramos ser realmente bons leitores não basta que tenhamos lido ou que entremos em parafuso querendo ler e guardar no coração tudo o que já foi dito a respeito por grandes críticos. Grandes críticos são leitores dinâmicos; eles leem os clássicos buscando novas perspectivas, novos pontos de partida. Eles colocam os clássicos para funcionarem ― para provarem que são clássicos porque ainda estão em forma e, assim como os livros recentes que rodopiam no espaço, inventam o tornado (embora a imensa maioria dos livros recentes cesse de inventá-lo, como muitos antes cessaram, dois segundos depois). O bom leitor estuda esse tornado. Querer limitar seu campo de análise apenas aos tornados antigos é basicamente a mesma coisa de visitar os destroços que ele deixou pelo caminho ― com a diferença crucial de que o tornado já passou por ali, e que o que fizemos foi, em outras palavras, sair do olho do furacão para a paz de um vilarejo arrasado.

Você pode fazer sua parte. Hoje, 22/11/14, Luísa Geisler, nO Globo (aqui), problematizou de forma esplêndida nossos critérios de seleção de leitura, denunciando o que 2014 abandeirou: nós não lemos mulheres; leiamos mais. O mesmo, no mesmo jornal e no mesmo dia, foi abordado por Bolívar Torres em reportagem (aqui). Fique a par do que está sendo discutido, ora essa. Visite revistas virtuais como o escamandro ou a Modo de Usar. Você já parou pra perceber que nesse mês de novembro as duas parecem ter se dedicado de forma especial à publicação de poemas inéditos?

Eppur si muove, caro leitor.