Banzando XIV: Wallace Stevens e Ferreira Gullar.


(Créditos créditos, respectivamente.)


Pude analisar a guinada filosofante que a poesia de Gullar adquiriu ao comparar sua produção à do poeta romântico inglês John Keats (aqui). Vamos voltar ao assunto, agora sob a égide da boa e velha tag Banzando. Wallace Stevens é também reconhecidamente um poeta filosófico, embora se deva notar que sua poesia, especialmente o caso do primeiro livro, Harmonium, 1923, possui poemas que Paulo Henriques Britto muito bem chamou de hedonistas. São poemas de notação mais curta, quem sabe próximos do Imagismo do começo do século ou próximo das tendências simbolistas à Verlaine, o que Britto também comentou de relance num texto para a Folha de São Paulo, 27/11/87, aqui.

O caso de Gullar é um marroumeno, pois, como pude argumentar, sua poesia aos poucos ganha uma tendência filosófica retirada dos prazeres cotidianos, dos espantos da vida: "De tais espantos somos feitos.", ele diz em Relva verde relva. Assim, Gullar não chega a compôr longas sequências calculadas a fio como no caso do último Stevens, embora conserve a boa e velha mistura entre imaginação e realidade, a imaginação tida quem sabe como fonte principal de contato com o mundo (pois para Gullar a vida não basta), assim como o primeiro Stevens demonstrava em seus poemas.

Os espantos de Gullar, portanto, levando-o à elucubração não raro vizinha da filosofia (entendendo filosofia como busca por conceitos, pelo essencial), o que é uma forma dele tentar "explicar" poeticamente ou apenas passar para o leitor o impacto daquilo que acabou de vivenciar, dando um tom maior à sua experiência pessoal (visto após o Poema Sujo); os espantos de Gullar assim, com Wallace Stevens temos o já citado embate entre imaginação-realidade que se aproxima das Coisas, posto que pra Stevens qualquer Coisa pode ser matéria de poesia, devendo o poeta ter a lucidez de observar que, a realidade estando atrelada à imaginação e vice-e-versa, a transfiguração poética ganha ares elucubrativos a partir do instante em que, digamos assim, a maioria dos poemas de Stevens após Harmonium necessita "entender" mais do que transmitir o embate  aludido para o leitor (e talvez seja nesse enfoque mais próximo do entender que diferencie um e outro, embora, é claro, esse entender seja um entender poético que se vale de estruturas discursivas, o que Stevens faz cabalmente em Notes toward a supreme fiction).

Sendo assim, trago para o leitor duas convergências entre Stevens e Gullar: uma girando em torno do tema da aranha e outra em torno do tema do esqueleto. Enjoy.



A
R
A
N
H
A
S

WALLACE STEVENS.

TATUAGEM.
trad. Paulo Henriques Britto. in: Piauí, abril de 2014, aqui.
A luz lembra uma aranha.
Caminha sobre a água.
Caminha pelas margens da neve.
Penetra sob as tuas pálpebras
E espalha ali suas teias ―
Duas teias.

As teias de teus olhos
Estão atadas
À carne e aos ossos teus
Como a um caibro ou capim.

Há filamentos de teus olhos
Na superfície da água
E nas margens da neve.

*

TATUAGEM.
trad. Augusto de Campos. in: Poesia da Recusa, Perspectiva, 2011, p. 275.
A luz é como aranha.
Oscila sobre a água.
Oscila sobre os ângulos da neve.
Oscila sob tuas pálpebras
E estende aí as teias ―
As duas teias.

As teias de teus olhos
Estão costuradas
À carne e aos ossos teus
Como à grama ou às vigas.

Há filamentos de teus olhos
À tona da água
E nos ângulos da neve.

*

TATUAGEM.
trad. João Moura Jr. in: Folha de São Paulo, 08/01/84, aqui.
A luz é como uma aranha.
Rasteja sobre a água.
Rasteja sobre a orla da neve.
Rasteja sob tuas pálpebras
E aí estende suas teias
― Suas duas teias.

As teias de teus olhos
Estão presas
A tua carne e ossos
Como a vigas ou relva.

Há filamento de teus olhos
Na superfície da água
E na orla da neve.

*

TATTOO.

The light is like a spider.
It crawls over the water.
It crawls over the edges of the snow.
It crawls under your eyelids
And spreads its webs there ―
Its two webs.

The webs of your eyes
Are fastened
To the flesh and bones of you
As to rafters or grass.


There are filaments of your eyes
On the surface of the water
And in the edges of the snow.


§

FERREIRA GULLAR.


De A luta corporal, 1950-1953.
           Aranha,
como árvore, engendra na sombra
a sua festa, seu voo qualquer.
Velhos sóis que a folhagem bebeu,
luz, poeira
agora, tecida no escuro. Alto abandono
em que os frutos alvorecem,
e rompem!

Mas não se exale a madurez
desse tempo: e role o ouro, escravo,
no chão,
para que o que é canto se redima sem ajuda.

*

UMA ARANHA.

in: Piauí, abril de 2007, aqui.
ela surgiu não sei de onde
       quando abri o Dicionário de Filosofia
       de José Ferrater Mora
       (no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
       com suas muitas perninhas
       quase invisíveis
cruzou a página 1 305 como se flutuasse
       (uma esfera de ar
       viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
                     fascinado
                                   indagava:
como pode residir
                     insuspeitado
nestas encardidas páginas
― em minha casa, afinal de contas ―
um tal ser
       mínimo mas vivo
       consciente de si
                                   (e como eu
                                   parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
       tão espantado quanto estou
       com este nosso inesperado encontro?


E
S
Q
U
E
L
E
T
O
S

WALLACE STEVENS.

AO SAIR DA SALA.
trad. Paulo Henriques Britto. in: Poemas, Cia das Letras, 1987, p. 197.
Você fala. Diz: O caráter do agora
Não é esqueleto saído do estojo. Nem eu.

Aquele poema sobre o abacaxi, aquele
Sobre a mente sempre insatisfeita,

Aquele sobre o herói plausível, e o outro
Sobre o verão, não são pensamentos de esqueleto.

Terei eu vivido uma vida de esqueleto,
Descrente da realidade,

Compatriota de todos os ossos do mundo?
Agora, aqui, a neve que eu esquecera se transforma

Em parte de uma realidade maior,
De uma apreciação de uma realidade,

Uma elevação, portanto, como se eu levasse,
Ao sair, algo palpável em todos os sentidos.

E no entanto nada mudou além do que é irreal,
Como se coisa alguma tivesse mudado.

*

AS YOU LEAVE THE ROOM.

You speak. You say: Today’s character is not
A skeleton out of its cabinet. Nor am I.

That poem about the pineapple, the one
About the mind as never satisfied,

The one about the credible hero, the one
About summer, are not what skeletons think about.

I wonder, have I lived a skeleton’s life,
As a disbeliever in reality,

A countryman of all the bones in the world?
Now, here, the snow I had forgotten becomes

Part of a major reality, part of
An appreciation of a reality

And thus an elevation, as if I left
With something I could touch, touch every way.

And yet nothing has been changed except what is
Unreal, as if nothing had been changed at all.



*

Há uma versão mais curta do poema denominada First Warmth. É a que se segue abaixo. Comentário sobre as duas versões no site da Illinois, aqui.

FIRST WARMTH.

I wonder, have I lived a skeleton's life,
As a questioner about reality,

A countryman of all the bones of the world?
Now, here, the warmth I had forgotten becomes

Part of the major reality, part of
An appreciation of a reality;

And thus an elevation, as if I lived
With something I could touch, touch every way.



§

FERREIRA GULLAR.

REFLEXÃO SOBRE O OSSO DA MINHA PERNA.
in: Em alguma parte alguma, José Olympio, 2012, p. 31-32.
A parte mais durável de mim
             são os ossos
             e a mais dura também

como, por exemplo, este osso
             da perna
             que apalpo
sob a macia cobertura

ativa
de carne e pele
             que o veste e inteiro
             me reveste
             dos pés à cabeça
                          esta vestimenta
                          fugaz e viva

             sim, este osso
             a mais dura parte de mim
             dura mais do que tudo o que ouço
             e penso
mais do que tudo o que invento
             e minto
             este osso
                          dito perônio
             é, sim,
a parte mais mineral
             e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
             irrigam-nas o sonho e a loucura

têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
para deixar no pó da terra
o osso
o fóssil

             futura
             peça de museu

             o osso
             este osso
             (a parte de mim
             mais dura
             e a que mais dura)
             é a que menos sou eu?

*

ACIDENTE NA SALA.
in: idem, p. 39.
movo a perna esquerda
          de mau jeito
e a cabeça do fêmur
                                  atrita
                                  com o osso da bacia
sofro um tranco

e me ouço perguntar:
          aconteceu comigo
          ou com meu osso?

e outra pergunta:
          eu sou meu osso?
          ou sou somente a mente
que a ele não se junta?

e outra:
se osso não pergunta,
          quem pergunta?
alguém que não é osso
          (nem carne)
          em mim habita?
alguém que nunca ouço
          a não ser quando
          em meu corpo
um osso com outro osso atrita?
*

OSSOS.
in: idem, p. 48.
depois de vinte anos
               mostraram-me a urna
               em que tinham guardado seus restos mortais

               alguns ossos brancos:
               os fêmures o ilíaco as vértebras e falanges
               Era tudo

               ― Não pode ser
               ― Como não pode ser?
               ― Esqueça ― disse eu

Estava no cemitério de São João Batista, em Botafogo.
Olhei para o alto onde zunia a luz do século XXI.

Vi que de fato
ele não estava ali:
eu o carregava comigo
               leve impalpável
               como um doído amor

*

OSSO PENSA?
in: Folha de São Paulo, 08/09/13, inaqui.
Quando pela primeira vez me dei conta de que meus poemas nasciam de um estado mental imprevisível, e o defini como um espanto, estava usando uma expressão de Platão. Ele afirmara que o conhecimento nasce do espanto.

Recentemente, tentei encontrar o texto em que o filósofo fazia tal afirmação e descobri que era no "Teeteto", quando atribui essa afirmação a Sócrates. Descobri também que a palavra grega que usa para espanto é "thaumázein", que significa também assombro, perplexidade, admiração.

Sim, é a mesma coisa que sinto quando me encontro na condição de escrever o poema. Espanto é realmente a palavra que define esse estado mental em que, de repente, a realidade se mostra inexplicada.

Isso pode ser provocado por qualquer fato, do mais raro ao mais banal, corriqueiro. E é o que mais me espanta: o meu fêmur que se choca com minha bacia, o ilíaco, e me faz, perplexo: "tenho dentro de mim um enorme osso, de que não me havia dado conta até este momento, em que senti chocarem-se, dentro de mim, um contra o outro. E a pergunta que surge é: eu sou esse osso? Esse osso sou eu? Formula essa pergunta, mas e osso, ele pergunta?".

Possivelmente, nem mesmo Platão seria capaz de responder a essas indagações, ou as responderia, mas depois de surpreender-se com essa espantosa descoberta: eu não sou apenas consciência, ideias, a pessoa que fala e pensa; sou também um enorme osso que bate no outro do mesmo modo que uma pedra se choca com outra pedra. E isso sou eu? Até onde o meu fêmur participa dessa minha indagação? Osso pergunta? Não, não pergunta.

Então devo concluir que sou uma consciência que pergunta e um osso que nada tem a ver com isso, é só matéria burra, como um mineral qualquer? Sou um ser consciente apoiado em osso que não tem nada a ver comigo? Mas como, se o sinto, se ele dói quando algo o atinge, e posso até morrer se quebra e infecciona? Ao que tudo indica, eu sou esse osso. Eu sou minha imaginação, meus desejos, minha reflexões, meus afetos e lembranças ― e esse osso também.

Mas vamos retomar a questão principal que me fez escrever esta crônica: se o espanto é a origem tanto do conhecimento quanto do poema, significa que a filosofia e a poesia são a mesma coisa? Essa é uma pergunta difícil de responder, mas me atrevo a dizer, antes de qualquer especulação, que não, que filosofia não é a mesma coisa que poesia. Sim, não é; não obstante, não apenas ambas nascem do espanto, como ambas implicam em reflexão.

Certamente, nem toda poesia implica reflexão em nível equivalente ao da filosofia. Há poemas que nascem quase que magicamente das próprias palavras, fazendo-nos pensar que alguém, que não o poeta, é que os inventou. E há também poemas de encantamento, que se alimentam mais da fantasia e da paixão do que desse espanto que gera reflexão.

Voltando à relação dos dois espantos ― o do filósofo e o do poeta ― vamos tentar deslindar o que os distingue e o que os aproxima. Até onde posso vislumbrar uma explicação para tal problema, diria que, no espanto, não há diferença entre o filósofo e o poeta, já que ambos são tomados, inesperadamente, da constatação de que não há explicação para o que acabam de perceber: osso pensa? Osso pergunta?

A diferença, então, estaria depois dessa constatação, que é diferente no filósofo e no poeta. Salvo, melhor juízo, acho que o filósofo tem necessidade de explicar o fato que o espantou, e o poeta não; o poeta quer apenas dizer que se espantou, que aquilo não tem mesmo explicação; o que ele deseja, em suma, é registrar o inexplicável, afirmar o insondável mistério da existência.

É nisso, creio eu, que os dois diferem, uma vez que seja próprio da filosofia explicar a existência. O filósofo não se conforma com inexplicabilidade do fenômeno que o espantou e, por essa razão, tem que explicá-lo, inseri-lo no sistema de pensamento que ele, filósofo, elabora na tentativa de tornar o mundo inteligível.

Admitir que não há explicação para a existência seria o fracasso da filosofia que, neste particular, situa-se no polo oposto ao da poesia. Sim, porque, para o poeta "só o que não se sabe é poesia".

E um beijo agradecido ao Caetano Veloso.