Um conceito de arte. Parte dois.


(Yayoi Kusama [1929], que basicamente põe bolinhas em tudo o que vê. Créditos.)



Sobre meu conceito de arte (aqui), temos que a principal muleta sobre o qual ele se apóia é a da linguagem. Trazendo para a discussão Nicolas Bourriaud (aqui), creio que podemos fazer alguns avanços.

Dentro do mapeamento feito por Anne Cauquelin (Teorias da Arte, trad. Rejane Janowitzer, Martins Fontes, 2005), meu conceito estaria numa teoria de acompanhamento semiológica (p. 114):

A arte não é também uma linguagem? Mas aqui a linguagem - se de fato existe arte como linguagem, será preciso demonstrá-lo - não está sendo abordada pela ótica da palavra dialogante à qual a interpretação é necessária para lhe dar sentido, mas pela ótica de um sistema que precisa ser descrito aproximando o de seus elementos constitutivos mais simples.

Mas não se trata dizer que "(...) estamos diante de uma visão expressamente materialista, antimetafísica, que restringe de maneira drástica o campo de manobra." (idem), pois meu conceito ressalta a característica humana prenhe da linguagem. É uma teoria de acompanhamento semiológica mas que toma de empréstimo reflexões da lógica do signo, isto é (p. 118):

O estudo da linguagem, aqui, não tem nem a mesma função nem a mesma intenção que encontramos nas análises precedentes: não se trata de aplicar, em objetos mudos, códigos que servem à palavra, nem de transportar estruturas reproduzidas a partir da língua, em suportes não-lingüistas, mas, sim, de ver como a própria língua é capaz de se refletir e se dobrar para engendrar a realidade do mundo que vemos ou, mais exatamente, que acreditamos ver.

Voltando a meu conceito, disse que arte é um ramo da cultura caracterizado pela expressividade humana da linguagem. Trazendo à baila o conceito de Bourriaud, "(...) a arte é uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo com o auxílio de signos, formas, gestos ou objetos." Sem dúvidas ele consegue chegar mais perto do que se entende por uma linguagem, e que podemos tentar definir como: linguagem é um conjunto de materiais compositivos que, uma vez formados, geram um liame semântico (este liame semântico é o que faz com que os materiais compositivos formem uma estrutura; esta, nos dizeres de Bourriaud, são entidades autônomas de dependências internas). Destaco o termo "formados", pois, no raciocínio de Bourriaud, acoplado às ideias de Epicuro e Lucrécio, forma é quando um dos átomos, que até então caíam paralelamente, sai de sua órbita e acarreta um bate-daqui-bate-de-lá que imita um mundo. Em minha definição, os materiais compositivos, até então sem liame semântico, de repente, saindo de suas órbitas particulares, chocam-se entre si e geram um.

Aqui nós podemos dividir as artes em dois tipos: aquelas que possuem uma linguagem anterior e aquelas que formam uma linguagem. O primeiro tipo compreende, por exemplo, a literatura, que se vale de uma língua qualquer: ou seja, uma linguagem anterior, pré-estabelecida. O segundo tipo compreende a música, onde as notas não formam uma linguagem: formam depois que a obra está feita.

Tanto em um tipo quanto outro, mas especialmente no primeiro tipo (pois já existe uma linguagem em cima da qual ele opera), a expressividade humana da linguagem está nesse deslocamento de materiais compositivos correlacionados a um material humano, vale dizer, criando um liame semântico que se caracteriza pela expressividade humana. No caso das artes de primeiro tipo, a metáfora dos materiais compositivos caindo em linhas paralelas obviamente não funciona mais, pois já temos uma linguagem anterior ao advento do objeto artístico. O trabalho do artista seria o de embaralhar de repente essa linguagem, tirando-a de seu âmbito instrumental para aqueloutro onde ela criará como que uma confusão, uma nova ordenação que seja capaz de se caracterizar pela expressividade humana da linguagem.

Essa especificação do que é linguagem continua abrindo e muito o campo, permitindo que, venha a ser o caso, os materiais compositivos sejam os mais variados possíveis. Por exemplo, no âmbito da arte de Yayoi Kusama, peguemos Infinite Mirror (créditos),


Todos os parâmetros de meu conceito de arte se encontram perfeitamente aqui. Não se trata de ridicularizarmos o fato de que a artista basicamente pinta de bolinhas o mundo. É notório que ela cria uma linguagem, que as bolinhas, materiais compositivos desconexos (pois a arte dela se encaixaria nas artes de segundo tipo), de repente ganham um poderoso liame semântico e conseguem se caracterizar por uma expressividade humana. Uma análise do que é ou não arte, além de precisar antes de tudo abstrair da ideia de que só o que é arte possui valor, possui interesse, também não pode parar na análise de valor dos materiais compositivos de determinada obra artística, sejam eles pedaços de dente, sejam eles merda de cavalo. Um conceito de arte é basicamente um conceito ordenador, não devendo servir de parâmetro de avaliação por si só, pois, como disse em meu texto passado, a arte é uma área específica da manifestação humana, nem boa nem ruim, bastando que se cite o fato de que determinadas manifestações humanas não-artísticas são melhores que muitas obras artísticas (a recíproca sendo verdadeira). E também não quer dizer que a constatação de que determinado objeto não sendo artístico, ele será varrido do interesse de qualquer entusiasta de arte: ele pode muito bem ter importância para a arte mesmo não sendo artístico.

Geralmente o que se utiliza para desmerecer uma arte como a de Kusama é de um raciocínio de decadência artística ou coisa do tipo que, entediante em muitos casos, parece encontrar respaldo em algumas atividades artísticas que, vamos colocar assim, passaram dos limites. O exemplo que sempre vem à tona é o de Duchamp. Mas Duchamp é um nome um tanto quanto complexo que bailou da iconoclastia à realização de arte. Num campo e noutro, e em toda a sua trajetória, ele foi uma peça-chave importantíssima para arte moderna no que tange seus questionamentos sobre estruturas clássicas da mecânica artística de então. Se tivermos, todavia, de tomar a obra de Duchamp como um todo, ou talvez algumas partes específicas de sua arte, como o caso dos ready made, não acho que vamos conseguir sustentar a posição de que se trata de arte. São manifestações humanas, especificamente manifestações culturais (entendendo cultura no sentido clássico de Edward B. Tylor, basicamente como arcabouço de saberes adquirido pelo homem como membro de uma sociedade) que possuem impacto direto no campo artístico. Assim, se abstrairmos o conceito artístico para algo além do lato sensu*, poderemos incluir o nome de Duchamp no campo da arte, mais ou menos como podemos incluir seu nome no da história da arte, independente do fato dele ter sido ou não um artista.

Pois o que me impele a continuar com essa saga de uma definição de arte, sob muitos relances algo digno de uma cavalaria quixotesca, não é o fato de querer varrer da esfera pura da arte os impostores. É simplesmente querer colocar as coisas em seu devido lugar para que não troquemos as bolas. Mais uma vez repito que não se trata de purismo, visto que a arte é hoje (e arrisco dizer que sempre foi) relacionada às mais variadas manifestações humanas, bem como a manifestações mundanas. Tal constatação, contudo, de que o terreno artístico é híbrido, não exclui a necessidade de conceituarmos. Este é, afirmo, um passo fundamental para que observemos a arte sob um prisma no mínimo mais realista.



*: o sentido stricto sensu seria arte como arquitetura, pintura, escultura, enquanto o sentido lato sensu se preocupa com a obra de arte de maneira geral (podendo englobar a música e a literatura, entre outros), e enquanto o além do lato sensu diz daquilo que Cauquelin chamou de rede artística, ou seja, algo que envolve a produção e recepção da arte.