Northrop Frye (1912 - 1991).



Anatomia da crítica. Northrop Frye.
Trad. Marcus de Martini.
1. ed. É Realizações, 2014.
Citações advindas da edição da
Princeton e Oxford UP, 10. ed, 1990.
Créditos da imagem.


Assim como a Antoine Compagnon (aqui), comento sucintamente um pequeno trecho do livro de Frye. Um comentário de maior envergadura requereria, no mínimo, uma gama de gráficos e resumos que eu sinceramente não estou com muito saco pra fazer, ainda mais depois da ressaca pós-Copa. Frye é amplo demais, possui uma teoria literária que consegue cumprir mais-do-que-bem aquilo que promete, enfrentando o problema literário com um grau de lucidez que me deixou encantado desde o princípio. Isso fez o autor mover montanhas, de modo que seu status de clássico de nascença ou simplesmente de obra incontornável está mais do que justificado. Num ano de vacas magras e onde minha mão-de-vaca fechou ainda mais, um investimento de algumas dilmas na aquisição do livro, na bem cuidada edição da É Realizações, foi necessário. E não preciso nem dizer que não me arrependo. O livro de Frye é pra mim o que a Cléo chama de Livro Óleo (aqui), o famoso livro de cabeceira ou, se quisermos ser ainda mais carinhosos, um livro de estimação.

Quero me concentrar na Introdução Polêmica. Frye nos propõe um estudo sistemático da literatura que a encare como um corpo não simplesmente total, mas regido por algumas leis. O Anatomia da Crítica todinho vai ser explicar quais seriam estar leis, e, das várias proposições de Frye, creio que certamente a mais célebre é a dos arquétipos, para além, é claro, dos modos. Para que cheguemos lá, é preciso que Frye rebata algumas críticas à atividade crítica, como a de que ela seria simplesmente obra de artistas fracassados ou coisa do gênero ("To defend the right of criticism to exist at all, therefore, is to assume that criticism is a structure of thought and knowledge existing in its own right, with some measure of independence from the art it deals with."), a de que crítica seria uma espécie de tirania ("The only way to forestall the work of criticism is through censorship, which has the same relation to criticism that lynching has to justice.") bem como da ideia de que apenas o artista seria capaz de fornecer um comentário-chave para sua obra e que a crítica seria perseguir esse rabo-de-ouro ("What he [o artista] says has a peculiar interest, but not a peculiar authority. // (...) // The poet speaking as critic produces, not criticism, but documents to be examined by critics.").

(Só lembrando, a respeito do último parêntesis, que Frye usa muito o termo "poema" se referindo à obra literária, conforme explicado no começo do Segundo Ensaio: "The fact, already mentioned, that there is no word for a work of literary art is one that I find particularly baffling." O mesmo em relação ao termo "poeta", generalizando "escritor".)

Frye também afasta a ideia de que a crítica se subordine a outras atividades, desviando o foco daquele que deveria ser o método fundamental: a análise de obras literárias antes e acima de tudo. O que não quer dizer exatamente na exclusão de valores extraliterários; quer dizer apenas que a atividade crítica não deverá ser guiada por eles, tendo os valores literários, numa inversão que nem sempre é tão clara ou óbvia assim, tidos como adornos durante o estudo.

A respeito destes dois últimos, cito:

Art, like nature, has to be distinguished from the systematic study of it, which is criticism. It is therefore impossible to "learn literature": one learns about it in a certain way, but what one learns, transitively, is the criticism of literature. Similarly, the difficulty often felt in "teaching literature" arises from the fact that it cannot be done: the criticism of literature is all that can be directly taught. Literature is not a subject of study, but an object of study: the fact that it consists of words, as we have seen, makes us confuse it with the talking verbal disciplines. The libraries reflect our confusion by cataloguing criticism as one of the subdivisions of literature. Criticism, rather, is to art what history is to action and philosophy to wisdom: a verbal imitation of a human productive power which in itself does not speak [acerca desta última frase, Frye diz, páginas atrás, "And, whatever it sounds like to call the poet inarticulate or speechless, there is a most important sense in which poems are as silent as statues. Poetry is a disinterested use of words: it does not address a reader directly"].

E:

The axioms and postulates of criticism, however, have to grow out of the art it deals with. The first thing the literary critic has to do is to read literature, to make an inductive survey of his own field and let his critical principles shape themselves solely out of his knowledge of that field. Critical principles cannot be taken over ready-made from theology, philosophy, politics, science, or any combination of these.

Nos balaios da atividade crítica Frye detecta o crítico acadêmico, preocupado com uma presunção científica da crítica, e o crítico público, preocupado com um contato direto com a obra literária e com um juízo de valor. Este último, para Frye, é simplesmente um documento da história do gosto, e nós não temos hoje  (década de 50) instrumentos para distinguir a crítica genuína, esforço para tornar o todo da literatura em algo inteligível, daquela outra outra forma de crítica que se pauta em modelos exclusivos.

É precisamente aí que fiquei um pouco encucado. É o ponto que quero examinar mais de perto. Expus em texto passado (aqui) minha ideia de que a atividade crítica é essencialmente uma atividade valorativa. Posso ter lido de forma desatenciosa, mas não creio que Frye em momento algum do livro explicite o que tenha querido dizer com o termo "crítica", algo sem dúvidas um pouco inquietante num autor que explica os mínimos termos utilizados, como, por exemplo, "sentido literal" ou "símbolo" (respectivamente: o sentido retirado do corpus textual; qualquer estrutura literária que possa ser isolada para apreciação crítica).

Em determinada passagem da Introdução, por exemplo, Frye diz que o crítico com o tempo descobrirá que Milton é um poeta mais compensador e sugestivo [rewarding and suggestive] de ser trabalhado que Blackmore. Como, ora essa, chegar a uma afirmação assim sem um juízo de valor, sem um contributo à história do gosto? Simplesmente chegando e não formulando, num processo de deixar que o poeta ruim seja tragado pelo tempo? A ideia não é de todo má, pois, às vezes, parece que tratar de poetas ruins é contraproducente. Todavia, não podemos nos deixar tragar por uma opinião assim: deixar que o processo avaliativo seja inteiramente pressuposto é muito mais perigoso.

O que se deve ressaltar que Frye não quer extirpar a história do gosto, não quer extirpar o crítico público nem o acadêmico. Ele simplesmente propõe uma via intermediária entre ambos:

The alternative assumption is that scholars and public critics are directly related by an intermediate form of criticism, a coherent and comprehensive theory of literature, logically and scientifically organized, some of which the student unconsciously learns as he goes on, but the main principles of which are as yet unknown to us. The development of such a criticism would fulfil the systematic and progressive element in research by assimilating its work into a unified structure of knowledge, as other sciences do. It would at the same time establish an authority within criticism for the public critic and the man of taste.

Seu objetivo é o de pensar a literatura em sua totalidade, em seu todo, sem exclusão de nenhuma manifestação literária que seja. Logo, quando Frye se refere aos críticos públicos escravos da história do gosto, está se referindo àqueles para quem o juízo positivo para com um poeta implica no juízo negativo para com outro, à guisa da permutação que Frye nos oferece entre supostos juízos de valor entre Milton e Shelley. Frye diz e consegue nos provar que uma situação assim é ridícula, visto que a crítica genuína é uma crítica que sempre progride e nunca regride ("(...) that criticism has no business to react against things, but should show a steady advance toward undiscriminating catholicity."; "(...) for a systematic study can only progress"). Ela sempre encarará o todo. Não aparará as pontas do fenômeno literário para que consiga ou incutir valores extraliterários (como o de "conservador" ou "liberal" a um artista) ou privilegiar um argumento posto antes da análise literária em si.

Quando ele diz que Milton é mais recompensador e sugestivo que Blackmore, Frye não está fazendo um contributo à história do gosto. O exemplo dos cem livros que alguém levaria a uma ilha deserta é o perfeito do desserviço à visão conglobante de literatura que a história do gosto oferece: presumir que a evolução literária possa ser resumida a cem livros é um absurdo.

Mas isso não exclui o processo avaliativo. Também creio que Frye não foi muito cuidadoso nesse ponto, pois, pelo menos de minha parte, as reiteradas leituras que fiz de sua Introdução me deram tal sensação. Existe sempre um liame prático de que o crítico não poderá avaliar o corpus poético como um todo. A ideia do paideuma de Pound é sempre um avanço, com todos os perigos evidentes que ela possui em seu bojo e que recairiam na gangorra literária (a história do gosto, prejudicial a uma visão integral da literatura, pois "It includes all casual, sentimental, and prejudiced value judgments, and all the literary chit-chat which makes the reputations of poets boom and crash in an imaginary stock exchange."). Dizer que Milton é mais recompensador e sugestivo que Blackmore é dizer que, com Milton, nós somos capazes de vislumbrar o fenômeno literário de maneira mais ampla, somos capazes de chegar a conclusões, em todos os sentidos, melhores. Para Frye, não temos é que prová-lo:

But the more obvious this becomes, the less time he will want to waste in belaboring the point. For belaboring the point is all he can do: any criticism motivated by a desire to establish or prove it will be merely one more document in the history of taste. But the difference between redeemable and irredeemable art, being based on the total experience of criticism, can never be theoretically formulated. There are too may Cinderellas among the poets, too many stones rejected from one fashionable building that have become heads of the next corner.

Contudo, reafirmo o que disse de que é necessário que o crítico saiba como prová-lo, sem querer dizer que ele irá fazê-lo de forma definitiva. Caso contrário, ficamos num jogo tácito de não-formulações que facilita sobremaneira o arbitrário da seleção de um cânone. Claro que algo assim, se verdadeiramente acoplado às ideias de Frye da literatura como um todo, dificilmente poderia ocorrer (na verdade, há uma ligeira diferença entre você afirmar que um poema é "bom", respaldado num conceito de Bondade transcendental, e dizer que um poema é mais recompensador, sugestivo ou mesmo mais rico, se tomarmos as rédeas de uma expressão assim). Mas continua sendo um risco grande. O que Frye quer dizer com os perigos da crítica literária subordinada ao gosto estão no gangorrismo literário e nos influxos que valores extraliterários (valores sociais, por exemplo) que tal maneira de crítica frequentemente incorre. Sua querela não é contra a crítica lúcida. É contra a crítica que valida um poeta em detrimento de outro.

Trata-se de uma lição essencial. E que passa longe da complacência. Sim, saibamos argumentar e demonstrar porquê Milton é mais recompensador e sugestivo que Blackmore. Em todos os sentidos. Desde o literário até o da inclusão contextual. Ouso dizer que até se valendo daquilo que Frye caracterizou como alfândega de metáforas morais tais quais a sinceridade, economia, finura, simplicidade e por aí vamos. Se o crítico tiver sempre o cuidado de não recair no gangorrismo ("The invariable mark of this fallacy is the selected tradition (...)"), e de olhar para a literatura como um todo, não há mal.

Aqui eu acho que me afasto do texto de Frye e incuto de mim mesmo. Minha ideia é a de que a valoração é ínsita à atividade crítica, e, lendo Frye, proponho aqui que ela deve ser posta em relevo, devendo ser um tipo de valoração que considera a realidade literária de maneira total, ou seja, ainda que venha a valorar negativamente uma obra, não implique com isso na exclusão dessa obra do âmbito literário ou crítico, mas precisamente na sua inserção na realidade literária no que lhe couber e da forma como couber, pois, de resto, obra alguma é nula o suficiente para não fazer parte da realidade literária. No âmbito da literatura contemporânea, isto implica não só que a atividade crítica deve ser feita com o senso de contemporaneidade a que me referi no texto passado (acima citado, e que encontra, creio, um respaldo em Frye quando ele diz que os fenômenos culturais devem ser avaliados em seu próprio contexto, sem avaliação contemporânea, ou seja, só num juízo que chamei "até-aí"); implica também que o crítico deve considerar uma gama maior de fatores em sua avaliação que o permita encarar a obra em suas proposições e resultados próprios, sem uma injeção em doses cavalares de algo como "pretensão de cânone" (ou que o valha) para todo texto que é produzido, coisa que certamente embaralha a avaliação pois privilegia antes mesmo da análise textual um tipo de texto em detrimento de outro.

Repito que não se trata de complacência: "The dialectic axis of criticism, then, has as one pole the total acceptance of the data of literature, and as the other the total acceptance of the potential values of those data." É uma busca progressiva rumo à lucidez, norteada pelo princípio maior de que o entendimento literário do crítico não deve ser exclusivo; antes, deve ser inclusivo, deve olhar o fenômeno literário e encará-lo como uma estrutura total e complexa para que não o seccionemos e selecionemos, de forma a mais das vezes arbitrárias, com o simples propósito de que presenteemos o amanhã com o que de melhor foi feito hoje. O amanhã será produzido das estruturas que agora estão funcionando. A história do gosto é muito cômoda pois, analisando um pedaço e jogando o resto fora, ela enseba um padrão e o torna firme e forte mais por um escudo cristalino ideológico que de fato por méritos literários: noutros termos, se o mérito literário é tudo aquilo que chuta o que está do lado pra fora de campo, temos aí mais do crítico que da obra em-si. Quando temos uma crítica inclusiva, não há planificação: há um panorama. De novo óbvio que, sem um respaldo prático, um método, o crítico naufraga ante a possibilidade de não poder enfrentar a totalidade da literatura.

E ele não precisa. A tarefa de Frye é fornecer instrumentos sólidos para que a totalidade da literatura seja enfrentada sem que o seja de maneira literal (literal aqui no sentido comum). O crítico que quiser ainda assim navegar em águas exclusivas pode ir; ele pode eventualmente fazer grandes contribuições. Apenas não terá a mesma seriedade do crítico que vê o fenômeno literário de forma integral. Algo, não preciso nem dizer, muito mais fascinante.