Reflexões sobre o poetrix.



I.

O poetrix sempre despertou meu interesse. Se posso apenas afirmar a importância do site Recanto das Letras na minha vida, apesar do exagero que uma expressão assim pode ter, então creio que meu ânimo em torno do poetrix está explicado, visto que foi no Recanto que o poetrix ganhou espaço, tornando-se extremamente praticado por pessoas de todos os tipos e de todos os propósitos.

O que seria o poetrix?

No Primeiro Manifesto Poetrix (aqui), a definição não é das melhores:

O que apresento neste livro - e que também é feito por muitos outros poetas - é o que agora proponho se chame POETRIX (poe, de poesia, poema; trix, de três, terceto), ou seja, a poesia em três versos, o terzetto, originalmente chamado na Itália.

O criador do poetrix é o poeta baiano Goulart Gomes. Caracteriza-se por ser um terceto minimalista de até trinta sílabas, e intitulado, que tem como objetivo "desengessar" o terceto e alcançar uma linguagem de desdobramentos semânticos lúdicos. Lembra, assim sendo, a proposta da Poesia Imagista do começo do século passado, possuindo, todavia, veios de comunicação com muito do que já se produziu no Brasil como haicai (mas que na verdade não era haicai), como alguns tercetos millorianos ou oswaldianos.

O poetrix faz-se acompanhar também de uma discussão sobre o que ele exatamente é, malgrado o fato de textos como a Bula Poetrix (aqui) já terem sido escritos oficialmente a respeito. E nem toda a discussão é inválida, pois, por exemplo, qual o sentido do poetrix decidir desengessar o terceto? Oras bolas: o terceto algum dia já foi engessado? Ou, se lermos alguns textos sobre o mesmo, notamos que sua proposta de ampla liberdade pode dar a entender que o poetrix é simplesmente um terceto comum com um rótulo, uma embalagem teórica, o que naturalmente deve ser esclarecido para que ele não se invalide (se o poetrix é tudo, ele é nada).

Eu considero o poetrix antes de tudo como uma proposta honesta. Como se deve saber ao se refletir sobre o haicai, grande parte do que se produziu no Brasil não é haicai. O poetrix basicamente tenta dar nomes aos bois ao invés de querer forçar a barra e dizer que qualquer coisa pode vir a ser haicai. Não é bem por aí. Não falo numa questão formal, pois a forma no haicai é o de menos; para Bashô, o próprio haicai é o de menos. Leminski falou disso muito bem em sua biografia do mestre japonês, isto é, de que o objetivo maior do haicai é o zen; certo que Leminski se esqueceu que o caminho do haicai, assim como o caminho da espada ou do chá, possui suas especificidades, que seriam, propriamente, a de falarem sobre a Natureza reconhecendo a transitoriedade e a complementariedade de tudo. Se entendemos tais postulados, podemos chegar a todos os outros, como o da objetividade e arrisco dizer que até o de seu pequeno tamanho. Porém, eles são essenciais para que o haicai seja haicai. Sem eles, não é.

Assim, o poetrix prefere criar uma categoria própria a insistir numa classificação errônea que termina sendo imposição a toda uma tradição milenar de outra cultura. É preciso que se reconheça que grande parte dos ditos haicais brasileiros não foram (nem são) haicais, e falo isso de Guilherme de Almeida a Millôr Fernandes. Não quer dizer, claro, que sejam automaticamente poemas ruins, pois podem funcionar como excelentes tercetos. Só não são haicais.

A nascente do poetrix, sendo assim, seria a de romper com "o ascetismo espartano do Hai-Kai" (penúltimo parágrafo do Primeiro Manifesto). Óbvio que enxergar na formalidade do haicai um ascetismo espartano é um verdadeiro absurdo. Parte de uma leitura muito superficial do estado a que o haicai chegou no Ocidente: ou seja, de fôrma. E, quanto a isso, já pude me referir outras vezes aqui no blog que é uma pena que, ao invés de entendermos contextualizadamente uma forma poética, nós prefiramos tratá-la em termos matemáticos. Assim ocorrido com a sextina, o soneto, o haicai, o rub'ai... E por aí vai.

Será que o haicai é tão espartano, tão rígido assim? Repito: oras!, o haicai é engessado? Quem lê os relatos pessoais dos grandes mestres haicaístas (no Brasil eu cito em específico Masuda Goga) perceberá que o haicai é uma libertação. Do mesmo modo que o "ascetismo espartano" do caminho da espada, com suas técnicas milenarmente construídas, é uma libertação. Podemos tão facilmente ligar a liberdade ao soltar foguetes ao céu, a negar qualquer tipo de autoridade? A sabedoria oriental, e, verdade seja dita, a sabedoria de maneira geral, nos diz muito bem que a liberdade pode existir dentro de ensinamentos à priori rígidos, mas, na prática, emancipadores. Tenho certeza que muitos conhecem a letra de música que diz que disciplina é liberdade. E este é o caso. Pois a liberdade do haicai é a liberdade de um caminho que não envolve simplesmente a evocação egótica e romântica de seus pés que abrem caminho, mas o dos nossos pés que juntos humanizam o asfalto.

O salto do Primeiro Manifesto Poetrix para o Segundo (aqui) é um foguetório que só. É nítido o pastiche feito pelos autores para com os manifestos oswaldianos. Obviamente que sem considerar esse pastiche como algo ruim, conforme visto no próprio texto. E de modo que os propósitos do poetrix, posteriormente desenvolvidos no texto Poetrix: uma proposta para o novo milênio (aqui), se caracterizam especialmente no que tange a proposição de uma maneira de escrever poesia que seja rápida e exata e que, principalmente, convide o leitor a participar também.

O belo título de um dos textos do Movimento é acerca disso: o Salto, o Susto e a Semântica (aqui). É uma característica recorrente da poesia a sua construção elíptica de modo a que o leitor participe do tal salto, do tal susto e da tal construção semântica aludida no título (Wolfgang Iser coloca tal participação ativa do leitor, aliás, na raiz diferenciadora entre a literatura e a não-literatura). O poetrix não é o primeiro a fazer isso. E o ponto central a ser levantado acerca do poetrix é: enquanto forma, ele é a denominação de uma coisa que já existe. É como se eu visse um cão na rua que sei que é de Fulaninho e então dissesse: "chamarás Totó", quando ele já se chamava "Dog". O poetrix, reitero o que disse mais em cima, libertaria demais. E a tal ponto que, em ser tudo, ele passaria a ser nada. E aqui está o X da questão. Não vou nem entrar no comentário ridículo de que o poetrix seria um "senryu desgarrado", pois isso só pode partir de quem não saiba o que é um senryu.

Seria assim mesmo?

Na realidade, a evolução do conceito de poetrix aponta justamente o contrário. Se tomarmos como base a Bula Poetrix, até hoje a martelada final sobre o assunto, poderemos entender onde quero chegar. De lá pra cá, é como se o poetrix, cansado de tentar ser entendido enquanto movimento poético, passasse a querer ser entendido como forma literária, como substituto do haicai numa terra onde o haicai nunca foi praticado mesmo. É quando formulam de maneira bem clara um conceito pro poetrix, donde destaco o limite de até trinta sílabas métricas. E destaco também a série de regras e conselhos que permeiam a estrutura do poetrix (ou, caso queiram, "características bem definidas e abrangentes", conforme o Primeiro Manifesto). Claro que elas partem de uma leitura de Goulart Gomes e dos integrantes do Movimento do que se foi feito no passado e que teria sido considerado ou como poetrix ou como proto-poetrix, bem como dos melhores resultados que o próprio poetrix alcançou; contudo, e creio que isso o termo "Bula" possa indicar muito bem, a série de regras e conselhos aponta para um progressivo tratamento do poetrix como forma fixa. E aqui eu lembro o leitor que, ao invés de lançar um olhar para a forma fixa apenas da perspectiva do leitor, deve-se lançar também um olhar da perspectiva do autor, isto é, o que significa uma forma fixa para quem escreve. Mas explicito: um poema com uma forma fixa não quer dizer que todos os poemas são iguais, conforme uma concepção torpe do senso comum. Quer dizer, pelo contrário, na perspectiva do autor, um modo de proceder formalmente para um espaço poemático determinado. Ou seja, eu especifico que é um modo de proceder formal pois, caso contrário, modos de proceder temáticos poderiam mudar a concepção do que seria uma forma fixa.

Destarte, um pouco irônico que a tendência do poetrix tenha sido a de cair em termos de "bula", ele mesmo, seguindo a trilha do Primeiro Manifesto, em seu ascetismo espartano. Se quisermos mesmo incorrer nas categorias bem questionáveis de que forma=invariabilidade=retaguarda, então o caminho do poetrix seria da vanguarda à retaguarda. Seria da liberação à regulamentação. Você pode ver isso muito bem se considerar que o título, no Primeiro Manifesto, era desejável mas não exigível, enquanto, na Bula, ele é indispensável. Claro que essa evolução tem seu respaldo prático, isto é, ele passou a ser indispensável pois o bom uso das potencialidades do poetrix mostrou que era melhor que assim fosse; todavia, não nega o que falei da liberação à regulamentação.

Mas óbvio que, em ser assim, o poetrix não deixou de ser abertamente popular. Pelo contrário. Um dos fenômenos mais interessantes que cercam o poetrix é o fato de que muitos de seus usuários criam categorias menores e muitas vezes desnecessárias acerca do poetrix. Seria o caso do palavatrix e do cruzadatrix (aqui), onde os processos inclusivos do poetrix deixam de serem contados em termos de escrita de poesia para o serem no nível de criação de parâmetros. Falo disso um pouco na terceira parte.

Sendo assim, poetrix: forma fixa? Tendo em vista o estágio a que chegou na Bula, creio ser possível sim dizer que se tornou em forma fixa, embora creia ser mais sensato dizer que no mínimo ele se encaminhou para uma posição muito próxima dela, e isto que é algo pra lá de irônico, visto que o ascetismo espartano do haicai, em sua evolução histórica, se afastou de uma tendência formal que, verdade seja dita, nunca existiu de maneira ferrenha em sua trajetória (isto é, a ideia de que haicai é só 5-7-5 é ridícula, pois existem haicais que quebram tal esquema). O mesmo haicai que, na visão inicial do poetrix seria rígido e deveria ser libertado, se tornou mais liberto do que o próprio poetrix.

Repito que qualquer delimitação temática não entra aqui: a forma fixa, de resto, não lida com elas, posto que a forma fixa diz respeito ao modo de proceder formal para um espaço poemático. Assim, muito ao contrário do senso comum, se é verdade que a forma fixa só à priori implicaria numa fixidez formal, o pólo oposto nos demonstra que a forma fixa permite ao poeta uma liberdade temática grande, coisa que nem sempre um Movimento Poético é capaz de propor, de modo que a guinada do poetrix rumo à forma fixa, pelo menos pra mim, é mais do que coerente.

Final de 2013.



II.

O leitor contemporâneo cada vez mais se projeta à condição de autor. Isso pode nos levar rumo à diferença entre o legível e o escrevível na obra de Barthes, bem como em seu conceito da morte do autor, ou todo um panorama pós-estruturalista que a meu ver já se encontra superado, bastando que se cite um nome como Umberto Eco. A ideia de que a significação de um texto é infinita... não é bem por aí, pois, citando Eco, em existirem limites interpretativos, é óbvio que uma obra não suporta todas as interpretações e é óbvio que, em determinado instante, nós passamos não a interpretar uma obra, mas a usá-la. E é no sentido de uso mesmo que eu afirmo que cada vez mais o leitor se projeta à condição de autor, pois produz, arqueologicamente tendo aquele texto X como base, um outro texto Y muito distinto. Podemos ver tal fenômeno, por exemplo, ao recebermos um e-mail que cita um texto de Clarice Lispector atribuído a Fernando Pessoa. Vemos isto, e de forma mais solidificada, na relação de hipertextos que a navegação na internet pressupõe.

Mas vemos isto também naquele tal poeta Z que, além de escrever um poetrix (provavelmente buscando "incrementar" sua produção, "atualizá-la com o que há de mais novo"), nas horas vagas decide inventar uma nova variante do mesmo, baseada na boa e velha lata de picles. E eu espero que qualquer discussão séria sobre tal assunto dê relevo no mínimo à questão das formas fixas como uma questão cultural, o que, de resto e como já dizia T. S. Eliot, entre tantos, é característica fulcral também da poesia (e da arte). Claro que nem isso seria satisfatório, pois a forma poética também tem em seu bojo toda uma concorrência ideológica. Seria possível, por exemplo, traçarmos discursos ideológicos tanto na proposta do poetrix quanto na proposta de escrever pra que me curtam.

Se o artista se propõe a criar formas fixas, ele pode ter em mente duas coisas: 1) criar uma forma fixa por necessidade interna (encontrar uma forma ideal de se expressar); ou 2) criar uma forma por necessidade externa (criar para demonstrar virtuosismo, para demonstrar o sei-sim-como-funciona-ora-essa!, o beijem-meu-talento-perdedores).

A segunda hipótese é a que nos toca, seguindo o exemplo do inventor Z e de pick-a-a-picles-poem. Se uma forma fixa implica num acercamento das áreas ditas e não ditas, temos que uma forma fixa é um modo de selecionamento ou de depuração, o que, de resto, em nossa sociedade contemporânea parece consistir numa necessidade diante do enorme fluxo informacional que nos adeja. Além disto, uma forma fixa é o caminho mais curto para o automatismo literário, é a forma mais curta e prática de se escrever um poema sem ter o que dizer, por mera rotina ou mera dor de cotovelo. A razão disso é a de que o caminho para a escrita automática de um poema é o caminho de se constatar tudo o que será não dito para só depois se chegar ao dito. O poeta, quando possui necessidades espirituais de escrita, e não meramente automáticas, possui uma ânsia de ampliar o dito até a barreira do não-dito. Por isso se observa porque obras como o Cent mille milliards de poèmes, de Raymound Queneau (ou grande parte do que a OuLiPo legou), foram escritas tomando como base formas fixas, visto que elas facilitam esse processo de constatação do não dito ao invés da expansão do dito*.

Se tivesse mais uma explicação para esse crescente fenômeno contemporâneo, poderia apontar para a relação materialística com que a poesia moderna passou a tratar o poema (e a arte), culminando com o Concretismo. Se nossa modernidade se caracteriza pela liquidez, é natural que esse tratamento tão sólido tenha sido posto em xeque, visto que ele é, por natureza, inconsistente. Mas isso não implica que esse tipo de relacionamento tenha acabado; na verdade, o tratamento meramente formal que ainda vigora em muitos estudos acadêmicos ou mesmo na relação de nosso inventor Z e seu pick-a-a-picles-poem são amostras disso (e no final, tal relação materialística não é um foul fiend shakespeariano). 

No entanto, é de se observar que se Z engendra uma forma fixa nova, ele espera que essa forma fixa vigore e que ela possa ser utilizada por outros poetas. Valendo-me de um vocabulário deleusiano, Z cria um virtual na esperança de que ele seja atualizado por um próximo poeta que se encante com as possibilidades de sua criação. Ou simplesmente se utiliza de sua forma fixa inventada como uma mercadoria de troca, não necessariamente com conotações diretamente econômicas. Logo, a criação de uma forma fixa hoje em dia se aproxima mais de um convite, de uma praça de convites, de uma área em aberto que funcione como uma estratificação ou uma comunidade, à guisa do que ocorre com as Redes Sociais.

Welcome to the internet.

Primeira parte em meados de 2012. Restante em 2009.


* :  Se o argumento de que a obra de arte se tornou meramente uma mercadoria é passível de indagações (ou seja, não recai no determinismo que alegam por aí), parece ser no mínimo contraditório que eu diga que seu processo de criação pode decorrer dum automatismo. Infelizmente, talvez seja. Mas felizmente, a resposta integral desse aparente paradoxo não caberia no presente ensaio, posto que se deturparia. 

Porém, se um esclarecimento tiver de ser esboçado, remeto mais uma vez ao poema de Queneau e digo que o que faz com que esse poema comporte milhões de outros poemas em seu bojo é não o fato dele ser permutável, mas o fato do leitor poder lê-lo de formas permutáveis. Logo, em essência a ideia de Queneau tem pouco de original. Além do mais, não creio que a simplificação da mercadoria capitalista a um mero automatismo, mesmo a mercadoria cultural, seja uma simplificação válida. 

Augusto de Campos, em Poesia da Recusa (Perspectiva 2011), introduzindo sua tradução pro Der XLI Libes-Kuss de Kuhlmann, de estrutura permutativa análoga (um golpe fatal para a OuLiPo!), comenta: "Tenho minhas reservas à experiência de Queneau, parecendo-me que as permutações, quando nada acrescentam ao poema, remanescendo num plano de indiferença receptiva, não logram ir além de curiosidade estatística. Mesmo assim, tais jogos combinatórios têm interesse e sugerem algo das configurações interativas da arte digital, que admitem a interferência do espectador na estrutura do texto." É também a minha opinião.