Poesia e Teatro. Adendo.



Podemos afastar alguns equívocos que meus ensaios anteriores em relação ao tema possam não ter esclarecido muito bem. O objetivo de todo dramaturgo é o de criar uma tensão dramática a mais poderosa possível, e quando falo numa tensão dramática poderosa não falo numa colcha de retalhos mexicana, mas, pelo contrário, numa força o bastante pra que valide o espetáculo como um todo e pra que prenda o espectador dentro de sua trama.

Contudo, alta tensão dramática não implica em escrita de poesia, caso o dramaturgo, claro, tenha optado assim. Primeiro pois alta tensão dramática nem mesmo implica em emoção, e quando falo em emoção me refiro especificamente ao movimento de uma personagem deixar que sua personalidade transborde, despenque, se descasque, se desnude. Assim, é possível que tenhamos uma alta tensão dramática que não redunde na emotividade das personagens, o que pode muito bem ser visto numa cena de Nelson Rodrigues*.

E emotividade também não redunda em escrita de poesia. Na verdade, e isso eu realmente creio que não deixei muito claro nos ensaios anteriores, as preocupações acerca de Poesia e Teatro são análogas às preocupações, de modo geral, entre Teatro e Arte. Claro que isso é um pouco redundante, pois o teatro envolve várias artes; mas aqui eu me refiro ao quando uma arte em específico é dada à luz de maneira bem clara, à guisa, por exemplo, da dança**. Assim, as dificuldades de se resolver o empasse contemporâneo de Poesia e Teatro são muito parecidos com os de se resolver Teatro e Arte, seja pelo fato de que o X da questão é o como fazer com que essa arte surja (e não colocá-la só como anel de ametista nos dedos da peça), seja pelo fato de que poesia, disse em ensaios anteriores, não se reduz a termos literários.

Assim, voltando, é possível que uma cena de grande emotividade não redunde em poesia ou arte pois a pessoa sempre pode se calar, ela sempre pode dar um abraço na outra, mostrar uma foto, chorar, não sei. Isso não é arte. (Sem mais delongas, remeto o leitor a meu conceito de arte, aqui.) Optar pela arte será trilhar algumas das muitas sendas possíveis, e é dever do dramaturgo fazer com que essa escolha seja natural, lógica, quem sabe inquietante ou, no mínimo, digerível.

Destarte, repito que não é preocupação do dramaturgo que pretenda escrever teatro poético a qualidade da poesia que é veiculada. Trata-se de um luxo que ele só poderá gozar se alcançar o estágio primordial de chegar até lá, ou seja, de conseguir fazer com que a poesia irrompa na tessitura dramática. Aí sim ele pode se preocupar com isso. Mas de se lembrar que, dramaturgo sério que se pressupõe que é, ele vai entender muito bem que não há nem mesmo necessidade que a poesia que saia da boca desses personagens seja "imortal".

A questão simplesmente não é essa. O dramaturgo que queira porque queira escrever um teatro poético é tão ridículo quanto o poeta que se pergunta o que é necessário para ser um bom sonetista. Ele está totalmente fora de eixo pois já começa fazendo as perguntas erradas. Não se deve perguntar o que faz um soneto ser bom; deve-se perguntar o que faz um poema ser bom. Do mesmo modo, escrever uma peça poética apenas para se chegar ao estatuto reconfortante e florido do "poético" é sem pé nem cabeça. O dramaturgo que enfrenta o problema assim, enfrenta moinhos de vento. Sua preocupação deve ser sempre a de escrever uma boa peça (e isso eu repeti exaustivamente nos ensaios anteriores: uma boa peça é tudo isso, boa) e, para que chegue lá, usar-se dos instrumentos que convierem.

E se tantos dramaturgos não enfrentam, por conseguinte, o problema dramático, crendo que com suas habilidades poéticas encantadas eles poderão fazer um bom espetáculo só montando burrinho na poesia, vamos ser sinceros: não está mais do que clara a razão de tantos barcos encalhados na praia?


*: Um momento alegre ou um momento de fúria, é claro, se encaixam na minha definição de emotividade dramática. Logo, não é apenas uma questão de tristeza. É uma questão mesmo de despir a personagem de sua personalidade social, aquilo que Proust disse ser invenção dos outros. É a personagem, sozinha, posta à crivo de todo o resto. Daí a fragilidade. Em Nelson Rodrigues, via de regra momentos assim não ocorrem, ou, se ocorrem, ocorrem apenas com algumas personagens, enquanto as outras preferem manter sua densa casca de hipocrisias e convenções sociais (enquanto fulminam a personagem despida, é claro). No geral, o caráter implacável de seu teatro reside nem tanto no fato de que Nelson controla suas personagens como um Deus flaubertiano, mas sim que as personagens também contra-atacam e, quando parecem estar totalmente à mercê dos desígnios das outras e do dramaturgo, atacam, demonstram que não estão totalmente nuas ou que, nuas, ainda estão vestidas. (E aqui eu posso evocar tanto as camadas e camadas simbólico-psíquicas de uma peça como Vestido de Noiva, quanto a brutalidade desconcertante de Bonitinha, mas ordinária, as reviravoltas massacrantes de Beijo no asfalto etc).

**: Na verdade, talvez não seja tão redundante assim. Tenho repensado muito minha ideia de que a espinha dorsal teatral é pluriartística. Na prática, o teatro reside apenas na arte cênica. O resto, querendo ou não, é adorno: o que, óbvio, não implica que possa ser excluído de qualquer peça, pois, uma vez que uma encenação decida se valer de maneira significativa da sonoplastia, por exemplo, torna-se inviável simplesmente excluir a sonoplastia do espetáculo. E essa é a grande questão, o grande problema: de maneira significativa.
           A maior parte dos espetáculos se vale dos recursos tecnológicos apenas de forma substitutiva, e aqui eu posso remeter o leitor às notas de rodapé de ensaios anteriores onde refleti sobre a poesia e as possibilidades técnicas contemporâneas. Todavia, repensando a situação, vejo que mesmo outra arte pode ser usada apenas de maneira instrumental dentro de um espetáculo, como uma canção usada só por usar ou só pra validar a cunhagem "musical" no pórtico. Onde quero chegar, pra resumir, é que a preocupação Poesia e Teatro é análoga de maneira mais ampla à preocupação Teatro e Arte pois essa outra forma artística seria usada não mais como instrumento e ponto final; ela seria usada de maneira significativa. Se a poesia costuma pipocar tão pouco hoje em dia, isso se deve ao fato de, conforme comentado em ensaios passados, ela não ser mais demandada em nossa sociedade: logo, nem mesmo como instrumento dramatúrgico ela costuma ser cogitada.