O leitor de poesia contemporânea. Parte II.




Vocês vejam aquele meu texto sobre o leitor de poesia contemporânea (aqui). Olha, eu tive um cuidado danado de deixar bem ampla a coisa toda: falei em "leitor". Pois existem muitas especificidades daí pra baixo que embananam o camarada todinho. Leitor é uma categoria maior, de modo que, dependendo de que caminho você toma, você vai poder ser chamado de X, sem, é claro, exclusão de habilidades de Y ou Z, pois, na prática, você vai estar falando de uma coisa maior. É raciocínio parecido com o exemplo que dei sobre falarmos de, por exemplo, Dante. Posso falar do florentino ignorando o contexto da época? Posso falar dele sem tecer comentários sobre a economia, a política, o social do momento? Poder eu até posso; mas é de se notar que uma coisa não só demanda a outra, como a possibilidade de uma leitura mais encorpada está aí.

Pois vejam bem: crítico é uma coisa, intérprete é outra, pesquisador é outra, professor é outra, tradutor é outra, teórico é outra... E por aí vamos. O crítico é aquele que valora. Óbvio que pra isso ele precisa de todo um aparato afim ao intérprete, ao teórico. E, como acho que pude mostrar em meu texto passado, o bom crítico é, mais amplamente, um leitor de seu tempo.

Mas será que existe redundância na hora de falarmos "crítica de poesia contemporânea"? Pois qual a necessidade de você valorar Dante, por exemplo? Ele já não está valorado o suficiente? Ora essa: a crítica seria apenas de literatura contemporânea, vocês não concordam?

Muita calma nessa hora. Dante já está valorado o suficiente? Olha, talvez se olharmos por um certo prisma, poderemos dizer que sim. Pois a atividade crítica valorativa, ela possui basicamente uma dimensão pra-frente e outra até-aí. Essa dimensão até-aí é a condição que todo crítico de poesia contemporânea se debate, pois ele não tem como estar lá na frente, estar lá no futuro e, logo, valorar o poeta com gente que ainda nem veio. Aí vocês vão se lembrar que, como a torcida do Flamengo vive repetindo (e eu também faço coro, fique claro), é só lá na frente que nós podemos ter distanciamento para fazer um "juízo válido" daquilo que observamos. Claro que, como também falei no texto passado, a coisa não é bem aí, e, na prática, o que constitui esse distanciamento crítico não é uma bola de cristal que ordena tudo de repente, mas justamente um tiroteio crítico que faz com que acalmemos os ânimos e ponhamos um pouco de ordem no caos, evidentemente que com todo o perigo de errar mas que, conforme também ressaltei, podendo ser muito bem feito se encontramos um bom artista e um bom crítico.

Já a atividade pra-frente, creio que no final das contas eu acabei demonstrando, é aquele tipo de juízo crítico que pode contar com categorias futuras.

Assim, no caso de Dante, um juízo crítico até-aí acerca de Dante seria um juízo que, quando muito, considerasse o dolce stil nuovo do tempo do autor, batendo no pára-choque de autores como Guido Cavalcanti. O juízo pra-frente seria o caso de compararmos Dante com Shakespeare. Cada qual tem sua validade, e, de preferência, o leitor deve formular tanto um quanto outro. O que, não preciso nem dizer, nem sempre ocorre, mesmo nos casos de história literária, onde é comum que o historiador se embanane todo e, pra mensurar ou pelo menos indicar a qualidade de Dante num juízo que deveria ser até-aí, começa a citar Petrarca, Boccaccio, Shakespeare, Camões. Pera lá, né gente?

É importante um juízo até-aí pois assim nós podemos olhar o negócio de maneira mais realista. Assim nós podemos abaixar um pouco a bola e aparar as bordas excessivas daquele rosário crítico que torna Dante num god among humans. Aí sim nós estamos prontos a averiguar também a qualidade de um Guido Cavalcanti, que jamais deve ser desprezada, pois, não sei se você sabiam, dentre tantas coisas que a História faz, uma delas é a de que ela ofusca, posto que ela é a história dos vencedores (já ouviram falar disso, né?).

Não desprezo o juízo pra-frente. É óbvio que não. Mas ele vai progressivamente deixando de ser juízo de crítico para ser juízo de intérprete, de pesquisador, de teórico. O juízo de crítico certamente envolve uma demanda ou uma essência de juízo até-aí que nem sempre aqueloutros conhecem. Por isso é que, essencialmente, eu creio que a crítica só seja mesmo de literatura contemporânea (uma das coisas que a salvam de apenas sê-lo é o fato de que ela demanda outras maneiras de contato com a obra literária). A crítica de outras épocas deve ser, para que seja mais leitura crítica que leitura interpretativa, uma crítica contemporizadora, vale dizer, ela vai se pautar num juízo até-aí para que consiga navegar em águas seguras. Obviamente que esse tipo de crítica dificilmente será feito só assim. Se pegarmos, por exemplo, a tarefa de verdadeira ressurreição crítica feita pelos Campos brothers para com Sousândrade, vamos observar que, além de um juízo até-aí, eles fatalmente se valeram de um juízo pra-frente, o que não constitui erro nenhum, visto que eles até possuem essa vantagem: como estão situados no futuro, pois bem, façamos uso desse instrumento a mais. É uma ferramenta interpretativa que me permite contextualizar ainda mais o poeta de quem falo, pois eu posso ler Sousândrade numa amplitude bem maior que a de um factível crítico brasileiro de época que dificilmente sabia do que estava acontecendo na poesia alemã no momento, ou a vanguarda da poesia francesa, e por aí vai.

Destarte, se eu quiser responder negativamente à questão "Dante já foi valorado o suficiente?", eu deverei, para tal, empreender especialmente um juízo até-aí. Nada me impede de efetuar um juízo pra-frente; mas as chances de que eu deixe de fazer um trabalho crítico e comece a fazer um trabalho interpretativo são altas. E, verdade seja dita, grandes merda que sejam. Pois a questão aqui é trazermos esse pensamento para a crítica de poesia contemporânea, uma vez que, repito, um juízo crítico, crítico mesmo, sobre Dante, é extremamente raro e específico nos dias de hoje. É como se esta já fosse uma questão resolvida, de modo que a pergunta "porque Dante é bom?" dificilmente é respondida pois ela é pressuposta, entre outros, no número de interpretações e pesquisas tão volumoso acerca do autor, bem como na intrincada teia que seu nome exerce como influência. Mas que se cite também que é uma pergunta que vez outra deve ser evocada para que consigamos mensurar quem Dante de fato foi e não apenas o rosário crítico que tende a endeusá-lo antes que entendê-lo. Assim, uma resposta para "porque Dante é bom?" demandará uma resposta crítica, um juízo que não seja apenas pra-frente, embora, é claro, um juízo pra-frente seja sempre mais cômodo nesse caso, dado que um juízo até-aí, no caso de Dante, envolve uma consideração, uma contextualização mais profunda para com a contemporaneidade dantesca que se brincar nós não temos como averiguar em níveis satisfatórios.

Evoco toda essa problemática, contudo, nem tanto para que respondamos questões como "Dante é bom?", pois, repito, ela já é uma pergunta respondida, de modo que a atividade crítica, terraplanagem ou linguagem de estacas, vai cedendo espaço para a atividade interpretativa, a tradutória, a didática etc. Trata-se de um entendimento da atividade crítica que tem como objetivo maior a poesia contemporânea, posto que o leitor de poesia contemporânea encarna aquela maneira de leitura que mais demanda a atividade crítica. Obviamente, repito, demanda vários outros setores também, mas é de se notar que tais setores acabam se tornando (relativamente) enfraquecidos pois não temos uma distância temporal adequada. O trabalho do teórico contemporâneo, isto é, o que pega a coisa do ponto onde ela foi deixada, é um trabalho bem mais de pesquisador. Reconheço que o trabalho do crítico é bem próximo do trabalho do pesquisador, mas também reconheço que os dois possuem lá suas divergências. Nem sempre, por exemplo, entra na mira do pesquisador o quesito valorativo, assim como nem sempre entra a comunicação constante e até mesmo caótica de categorias que passam pela lente do crítico de poesia contemporânea.

Isto posto, o crítico de poesia contemporânea não deve exercer sua atividade olhando tão somente para o futuro. É normal que na prática ele o faça, pois é a única forma de pagamento que o crítico pode receber e guardar de verdade: a de que, no futuro, ele poderá ser reconhecido como "o que acertou". Ele deverá fazê-la especialmente no que tange um juízo até-aí, o que envolve tanto uma análise cuidadosa do que já foi feito, quanto de um ensaio panorâmico consistente (e sim, ele pode sim ser muito consistente) do que está sendo feito, além, é claro, de um esforço de leitura de sua sociedade em tudo o que ela implica de contradições e demandas. O crítico que começa jogando búzios e vê sua atividade mais como uma atividade afim à Mãe Diná, ou uma atividade de gravar inesquecivelmente os pobres poetas em algum monolito, provavelmente está no caminho errado, pois, como disse com insistência no texto anterior, sua atividade é uma atividade com os dentes cravados no agora, arrisco dizer que ainda mais que a do próprio poeta.

Mas pra chegar até lá, força é que estabeleça categorias de análise e de valoração que consigam aproximá-lo da realidade. Não basta, por exemplo, observar e valorar um poeta apenas em seus critérios estéticos. Obviamente que ele deverá fazê-lo, e, quando eu falo em critérios estéticos, me refiro especificamente aos critérios que abordei no texto passado: 1) invenção e 2) embate com a contemporaneidade.

Vou tentar exemplificar onde quero chegar.

Peguemos um poema do poeta carioca Pedro Tostes,

                           POÉTICA.

            A poesia é mesmo caso sério:
            vez por outra vai parar no cemitério.
            E sempre volta, como um
            zumbi literário.

            A poesia brasileira anda broxa,
            não mata a cobra,
            esconde o pau
            e espera ansiosamente pelo
            próximo edital.

            A poesia brasileira contemporânea
            é esquizofônica;
            uma hora fala duro,
            na outra difícil (e demonstra
            pouca propensão a atirar-se
            de edifícios).

            A poesia brasileira corrente é polida,
            faz foto pro cartaz, gosta
            de ser notícia no jornal, do caderno
            de resenhas, é bonita
            limpinha, correta e erra pouco.
            Fuma mas não traga,
            estupra mas não mata
            e tá sempre em cima do muro.

            O poeta? Que se foda! Ele que morra duro.

Retirado daqui.

Não me parece ser um bom poema. É claro tom agressivo do poeta, respaldado em entrevistas (aqui), mas me parece que ele não conseguiu conduzi-lo ao que de fato é o X da questão. Falou da poesia brasileira, criticou seu bunda-molismo que, se olharmos para a produção de maneira realmente ampla, vamos poder notar bem, falou até mesmo de um certo establishment que vem surgindo com a moda promissora dos editais e por aí vai. (Sobre essa questão dos editais, minha opinião vai de encontro a João Cezar de Castro Rocha, aqui.) Tais me parecem, contudo, críticas superficiais à questão, posto que acaba atacando mais os poetas em-si, ou seja, o poeta, carne e osso, e parece querer incutir a culpa nele, quando não me parece ser bem por aí. É de se perguntar, afinal de contas, se o problema de fato reside no poeta que "espera ansiosamente pelo / próximo edital" ou se não está numa política de descasos ou mesmo numa ideologia geral que tende a empurrar a poesia de volta aos braços confortáveis do secular patrimonialismo brasileiro.

É um poema que me lembra muito o antológico Ode ao Burguês de Mário de Andrade (aqui), com a diferença de que o poema de Mário possui um trabalho mais inventivo com a linguagem, o que, por conseguinte, o leva a fazer uma crítica mais profunda, um ataque mais direto que o poema de Tostes. (Mas fique também claro que este não é dos melhores poemas de Mário, muito menos o melhor poema de Mário sobre o tema, bastando que cite determinados trechos do Meditação sobre o Rio Tietê que também cospem suas baladas de canhão.) Assim, note-se como, no título do poema de Mário, a palavra "ode" é facilmente confundida com "ódio", e note como a tonalidade conclamativa de seus versos ajudam a caricaturizar o burguês de uma maneira afim aos golpes mais incisivos feitos pelos futuristas da época. E é um pormenor formal como este que dá toda uma dimensão maior ao poema de Mário, pois mostra que Mário não estava indo superficialmente contra a arte, mas contra a raiz do problema, e não só isso, pois mostra também que Mário estava em consonância com os resultados poéticos mais pertinentes de seu tempo, e que ele estava disposto a usar sua Oficina Irritada como uma arma em prol do demolimento e não como uma espécie de jogo lúdico, uma seiva que corre nas veias do poeta e por instantes dá a entender que a raiva-pela-raiva basta. Vale dizer, por exemplo, o clichê em que Tostes cai em imagens como o zumbi literário da primeira estrofe ou o morrer duro da última: não quero dizer com isso que o clichê por si só seja mal, visto que o poema de Mário também possui os seus, como o bom burguês também da última estrofe, mas sim que Mário, estando num poema mais inventivo que o de Tostes, consegue converter estas expressões tão comuns em algo novo, algo surpreendente e que serve aos propósitos do artista. Assim, o clichê no poema de Tostes não é nem tanto um clichê por si só, mas um clichê pois Tostes chega a modelos críticos que qualquer um de nós chegaria, se continuarmos vendo no poeta um pobre coitado e vendo na tarefa poética uma atividade a ser criticada, ao invés das bases do problema.

Um exemplo de poema bem conduzido do autor seria O Coro dos Contentes,

                           O CORO DOS CONTENTES.

            não podemos reclamar

            está tudo uma maravilha:
            cada um em sua ilha, incomunicáveis
            em celulares plugados,
            caminhando desligados,
            perdidos sem rumo e direção
            essa prodigiosa geração

            não podemos reclamar

            economia nau vagando verdes mares,
            pleno emprego a garantir
            uma sobrevivência miserável
            sem tempo para o que se desvela
            aguardando um amanhã incerto
            na angústia estalam tempestades

            não podemos reclamar

            produzir, produzir, produzir
            máquina moendo a todos
            apertados em latas de sardinha
            parando no tráfego desinformações
            nada anda
            mas rendemos um bom troco
            a troco de que?

            não podemos reclamar

            parar, respirar
            resistência que nos cabe
            flor que súbito abre
            não mais refletir o espelho
            que reflete e reflete e reflete
            num jogo labirinto
            sem chegar a lugar algum

            não podemos reclamar

            temos sangue, suor,
            quem sabe até coração
            belas estórias de amor
            projetada em telas
            tridimensionais
            sem sequer nos atingir

            não podemos reclamar

            a ciência garante longa vida;
            caixinhas de leite com soda cáustica,
            cada um com a sua: deixam até colorir!
            só não pode beber, fumar, comer,
            embriagar-se de prazer
            vivamos, pois, a contar
            as faixas da colorbar

            e não podemos reclamar

Me parece bem claro que a utilização de uma estrutura em coro foi muito bem feita pelo autor. Pois, por mais que você nade contra a corrente, você deve reconhecer que esta ideologia representada nos versos de Tostes está na ponta da minha, da sua e da nossa língua. Além do mais, aqui Tostes consegue um andamento poemático muito mais interessante pois ele vai criando cargas de excesso que desaguam nesse "não podemos reclamar" que, com um efeito estrutural de alívio (que é, aliás, o efeito básico de todo refrão), acaba fazendo justamente o contrário, pois nos aliviamos do fardo da enumeração pesada e vexante, e vamos direto à constatação de que somos assim, e de que esse pequeno suspiro que demos é só pra continuar de novo. Por isso um detalhe como a simples conjunção "e" na última estrofe é importante, pois dá a entender que tudo tende a continuar, por mais que, com sua adição, dê a entender que terminou. Terminou ali, na estrutura musical-sem-música do poema, mas nós sabemos bem que há de continuar, pois também fazemos parte desse coro de contentes.

Antes, porém, de chegarmos ao X da questão, vamos abrir ainda mais o parêntesis. Voltemos ao Poética de Tostes. E o comparemos a um poema que possui o mesmo escopo.

                           OBITUÁRIO LITERÁRIO COM FIGURAS DE GATOS E RATOS.
Fabiano Calixto.

            os ratos roeram a vida dos poetas
            — livres do peso das letras, os estetas

            em outras esferas escreverão, pois,
            no cavo, vácuo profundo, sem voz, à foice

            (esta persiana a zerar o ar dos distraídos),
            não mais poemas, já que lidos os labirintos,

            nada mais resta, nada, nem a quem se
            amar ou refutar, não esfria, nem aquece,

            a luta com palavras já não faz parte de
            paixões ou razões puras, nenhum alarde,

            nada de metáforas, nenhuma metonímia
            — a menina de lá não dá mesmo a mínima.

            os ratos, rudes e arrogantes orates,
            gorjeiam na goela os corpos dos vates

            e, ainda assim, nas estantes, talhados,
            ficam os poemas — como nos telhados

            gatos de gostos e colmilhos afiados, à leitura
            nasal do rastro dos ratos, vigiam venturas.

            de um pulo a outro salto, uma gangue
            de gatos retalha a noite com sangue

            de restos de ratos que das tripas, as tropas
            de versos, vazam as mais soberbas sopas.

Retirado daqui.

Ainda espero falar sobre Calixto aqui no blog, a meu ver um dos poetas mais fundamentais da contemporaneidade. E de fato há muito que ser dito sobre seu poema. Quero, porém, ressaltar de início o fato de que Calixto também parte de um clichê: gato e rato. Mas no caso de Calixto esse clichê é trabalhado de maneira muito inventiva, de modo que ele não é apropriado pela força sempre maior do clichê: isto é, ao usar um clichê, é sempre mais provável que ele esteja nos usando. Em Calixto, é o contrário. Primeiro pois a forma do poema é interessante num poeta que via de regra se pauta no verso livre. Versos no geral decassilábicos rimados em dísticos, algo que me lembra um formato epigramático que parece remeter a uma possível forma de epitáfios... (O epitáfio, a rigor, nunca teve forma.) O clima que Calixto critica é análogo à esterilidade apontada por Tostes, mas com um aprofundamento muito maior, tanto pelo fato de que Calixto efetivamente usa seu poema como arma de destruição em massa, batendo seu martelo no chão da poesia e ajudando a exterminar inocências, quanto pelo fato de que ele consegue sutilezas de detalhe que vão muito além do esbravejamento do poema de Tostes. Assim, por exemplo, o quesito das paranomásias que vão dando a sensação presente de um certo corroimento, um ruído que perpassa o poema e que parece dar a entender que os ratos estão próximos deles e de nós, como em "rastro dos ratos, vigiam venturas". Ou uma expressão como "já que lidos os labirintos" num ambiente onde o único labirinto que parece ter restado é o das tripas dos poetas (além, lógico, do forte sarcasmo que ela representa, bem diferente de apenas evocar um "zumbi literário" ela chega ao nível de refinamento de usar as armas do discurso dominante contra a própria dominação). E a sanguinolência, a facundidade banhada a sangue que o poema apresenta e que me lembra a proliferação animalesca em Os Sapos de Manuel Bandeira (aqui),

            Outros, sapos-pipas
            (Um mal em si cabe),
            Falam pelas tripas,
            - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".


Porém, como dito, não vamos muito longe. O que quis ressaltar, com essa longa digressão, é que o poema Poética de Pedro Tostes não é dos melhores. É poema ruim. E de maneira geral, não considero Tostes um bom poeta, o que não quer dizer, conforme o texto passado, que vou sempre classificá-lo assim, pois nada me garante que ele não possa melhorar (como até pressuponho que vá, tendo em vista poemas como Hard Porn, dos melhores do gênero, ou o próprio O Coro dos Contentes). Mas aqui cumpre observarmos que uma análise apenas nestes parâmetros da poesia de Tostes é incompleta, e esse é o X da questão.

Ponham reparo na micro-biografia do poeta no site da Patuá (aqui):

(...) Pedro Tostes é poeta reincidente e insistente. Já teve seus livros apreendidos e ainda sim não aprendeu. Fez parte da Poesia Maloqueirista, mas lembrou que sua mãe sempre o aconselhou a evitar más companhias.

Há um certo heroísmo em ser poeta e ter seus livros apreendidos. Justo hoje, quando reiteramos tanto nossa democracia mas, vez outra, nos espantamos com arbitrariedades tão gritantes, com ranços tão evidentes! Oras: não sei quanto a vocês, mas pra mim isso é o suficiente para que um interesse em torno de Pedro Tostes seja gerado. E que ele possa vir à baila, é claro que sim, pois os critérios de análise de sua atividade eu não digo só enquanto poeta, mas enquanto artista, enquanto contemporâneo nosso, possam ser averiguados. Assim, se você for ler mais acerca da Poesia Maloqueirista (aqui), vai ver como a intervenção urbana é tão poderosa em sua constituição. As características que apontei em Poética que a meu ver fundamentam minha valoração negativa do mesmo, por exemplo, podem ajudar a impulsionar uma possível intervenção urbana. De modo que lermos Pedro Tostes apenas na categoria de poeta é muito pouco. É preciso que pensemos em outras categorias de análise para que o artista possa vir a ser entendido de maneira mais realista. É algo parecido com querermos ler um best seller como se ele angariasse para si uma pretensão de cânone. Ora essa: se ele quiser apenas encantar um pouco seus leitores e retirar um tiquinho da fadiga diária com doses tão gostosas de imaginação, que mal tem? E se ele conseguiu, que mal tem?! Óbvio que a construção de categorias de análise variam muito e possuem sempre o risco de cair no minimalismo ridículo, como querer dizer que um poema é bom dentro da categoria de análise "alegrar-mamãe". (E o remédio para isso é a análise da pertinência da categoria por si só, isto é, qual seria a pertinência de uma categoria como "alegrar-mamãe" se posta ao lado de uma categoria como "intervenção urbana"?).

É preciso todo um cuidado nessas horas. Posso dar a entender que, por exemplo, Calixto é um poeta mais engomadinho que Tostes, o que simplesmente não é. Um bom poeta, e isso Calixto é, é um poeta que transcende categorias, de modo que pode estar em muitas e, na prática, parece até mesmo estar em todas. Podem ter certeza que o poema de Calixto daria uma puta intervenção urbana. A questão que quero levantar, logo, não é a de que as categorias e análise crítica serviriam como cotas para o cânone. É simplesmente que, a meu ver, elas ajudam sobremaneira na hora de um juízo crítico até-aí; é que elas nos ajudam a olhar para o fenômeno de maneira mais realista e pararmos de querer descartar escritores e escritores com base numa leitura muitas vezes duvidosa, alicerçada em critérios transcendentais que, ei!, não são bem assim. O crítico que começa sua atividade de olho no amanhã já está começando errado. Deve ler seu tempo, repito, deve ressaltar a contemporaneidade daquilo que faz pois só assim ele poderá fazer uma valoração que seja um serviço à emancipação humana e não um andar-de-mãos-dadas com a ideologia dominante.

Assim, tendo em vista que a luta pela literatura contemporânea deve ser mediada por uma leitura da contemporaneidade, é mais do que claro que a crítica, que é talvez a atividade que demande com maior equidade ao longo de seu processo essa mesma contemporaneidade, deva se valer de uma leitura realista do fenômeno contemporâneo, deixando de lado um pouco sua proposta de laureamento em prol de uma proposta interventiva — em suma, que a crítica tome partido, já dizia Benjamin. Mais uma vez ressalto que o laureamento não é negativo (ele está no cerne da atividade crítica); pelo contrário, ele é até necessário, mas, claro, se feito de maneira séria e com parâmetros que ressaltem mais a contemporaneidade e menos o tiro no escuro.


§

Por fim, uma possível errata. Citei, no texto passado, como exemplos de bons críticos, nomes como Hugh Kenner, Susan Howe, Raymundo Faoro, Antonio Candido. Muita calma nessa hora. É preciso mais uma vez, eu repito, separarmos um pouquinho o joio do trigo. Pois, como disse, há o crítico, o intérprete, o pesquisador etc. Se eu quisesse realmente citar exemplos de bons críticos, aí eu teria que especificar. Seria o caso de citar aquele Antonio Candido que, leitor atenciosíssimo, já ressaltava características basilares de João Cabral antes de todo mundo. Aí sim. Seria dar uma atenção maior àquilo que João Cezar de Castro Rocha chama de crítica de rodapé (Crítica literária em busca do tempo perdido, editora Argos, 2011, resenha de Diego Gomes do Valle aqui), e que, conforme argumenta, é hoje mais do que esquecida no cenário crítico contemporâneo, onde a crítica está em cárcere privado nos portões da faculdade e, por conseguinte, é "confundida" com a atividade acadêmica (entre aspas pois não faz mal que seja confundida, visto que são campos que por natureza se confundem; o problema é que é um tipo de confusão que faz um desserviço tanto pra um quanto pra outro).

Lendo de maneira atenta, eu mantenho os nomes que citei e até mesmo o exemplo de Faoro, pois o considero um bom exemplar de leitor que possa sim efetuar um juízo crítico pra-frente bem feito. Primeiro pois o objetivo dele não foi nem tanto o de um juízo crítico, mas o de uma interpretação da obra de Machado que, conforme ressaltado, teve como fins entender o Brasil de então e o Brasil de agora. E segundo pois, quando Faoro se permite juízos críticos, ele o faz com uma categoria até-aí muito lúcida, enxergando o fenômeno literário como algo coerente e não uma mera profusão de nomes de efeito, aquela coisa vaga que faz com que muitos textos de leitura literária naufraguem: se comprazem apenas com os nomes de autoridade evocados de maneira a manterem uma coerência que, atentamente lida, só existe na cabeça do autor do texto. E aí o que ocorre é que o texto se torna uma enorme rede de pesca, onde essa tessitura de nomes serve para um como para todos. E a razão é simples: ao invés de ler a contemporaneidade de maneira mais ampla, o camarada prefere boiar no arcabouço de conceitos e tecer seus silêncios.