Grandes poemas contemporâneos. "só me consolaria", de Angélica Freitas.


(Vai um cafézinho aí? Créditos.)


me consolaria:
o ejetor de teias
do homem-aranha
só lá no alto
entre prédios
não se veria
este coração
sem plumas

– algum vilão
por aí
usa um
colar de penas
made in
my heart –

só lá em cima
entre edifícios
com o aval
das pombas

uma criança
olha pra cima
mamãe, mamãe
é a mulher
-aranha?
não seja tola
ela está
limpando
janelas

me consolaria:
o ejetor de teias
do homem-aranha
só lá no alto
entre prédios
não se veria
um coração
sem planos

§

Retirado daqui.


Pude falar da comicidade na poesia de Angélica em texto passado (aqui). Já aqui vai dar pra focar num poema em específico, em tempos de pré-estreia do cabeça de teia, e expandir o que tratei sobre a aproximação entre Angélica Freitas e Carlos Drummond. A ponte traçada será a de identificar as correspondências entre o famoso humor drummondiano e o humor que Angélica tem construído, especificamente no fato de que, em seus dois livros publicados, podemos notar como Angélica aos poucos abandona o humor, digamos, leve, positivo, um humor de clown, para adotar um humor irônico e amargurado, explosivo. Terei como apoio a tese de doutorado de Patrícia Rocha Pirolla, "O humor em poemas": um estudo cômico de Carlos Drummond de Andrade, e a análise dos traços satíricos na poesia de Angélica feita por Ricardo Domeneck aqui.

Do poema que estamos tratando, uma das coisas mais evidentes em sua construção é a insuficiência. O final dele consegue demonstrar isto muito bem; aspectos formais, contudo, também ajudam a mostrar como a poeta dá relevo a tal característica a um só tempo combatida e incorporada ao longo do livro (Rilke Shake, disponível para download aqui). Refiro-me em especial ao início de muitas estrofes com a palavra "só", que sem dúvidas se reveste de uma carga ambígua, bem como ao pedido à priori estapafúrdio de se querer o ejetor de teias do homem-aranha.

Não pensamos na possibilidade do eu lírico ser uma criança, pra começo de conversa. São raros, aliás, os poemas que apresentam uma criança como construtora do poema. Isso pra qualquer poeta, pra qualquer época. Mesmo num poema como Os poetas de sete anos, de Rimbaud (aqui), a construção toda é voltada à maturidade. E mesmo que fosse uma criança, a inclusão do desejo de se querer o ejetor de teias do homem-aranha é, em nossa sociedade sexista, algo longe dos desejos de uma menina (Angélica aborda esse assunto no poema "Fliperama às margens do tâmisa").

A expressão "sem plumas", obviamente emprestada de João Cabral, é das coisas que só revelam a habilidade de Angélica na escolha de termos. Habilidade pois deixa de modo bem claro que, fora do alto dos prédios, nessa situação heroica e mascarada de combate ao crime, o que enxergariam de seu coração seria um coração com plumas. Coração enfeitado. Toda aquela patuscada sobre o coração feminino que termina no Segundo Sexo de Beauvoir. Aqui, porém, a evocação de Cabral é duplamente forte pois demonstra tanto a crueza do coração, sem enfeite algum, como lembra o processo de desconstrução da realidade ideada por uma realidade nua, crua, exposta, que Cabral advoga em seu célebre poema. Basta que se cite, de Um cão sem plumas (aqui),

    Como o rio
    aqueles homens
    são como cães sem plumas
    (um cão sem plumas
    é mais
    que um cão saqueado;
    é mais
    que um cão assassinado.

    Um cão sem plumas
    é quando uma árvore sem voz.
    É quando de um pássaro
    suas raízes no ar.
    É quando a alguma coisa
    roem tão fundo
    até o que não tem).

Essa espécie de mais-valia conceitual, em tempos onde nos expomos, criamos crosta e alimentamos preconceitos, é fundamente atacada por Cabral que, em outros momentos ao longo de sua obra (como em Morte e Vida Severina ou O Rio), abrirá a arca da devassidão que o cerca, da realidade em que o autor finca os pés e se propõe a evidenciar malgradas as paixões infundadas da poesia pobremente ideológica e da poesia parcialmente sentimental (entenda-se: sentimental só ao redor do umbigo). É o que Cabral se pergunta no final da primeira parte, uma das mais belas do poema todo: "Aquele rio / saltou alegre em alguma parte? / Foi canção ou fonte / em alguma parte? / Por que então seus olhos / vinham pintados de azul / nos mapas?"

Será no livro posterior que Angélica tratará de maneira mais extensa do que está por trás da figura da Mulher em nossa querida sociedade. Só citar o título: Um útero é do tamanho de um punho (aqui). A corrosão em seu livro de estreia poucas vezes, por exemplo, dá relevo ao corpo. Seria o caso de poemas como rito de passagem ou fim. E todavia, falar do corpo com um arsenal cômico é algo muito mais antigo e revelador do que se pode pensar. Citando Pirolla, na página 59,

Enquanto na tragédia há homens que são semi-deuses, seres superiores, próximos às divindades, espiritual e psicologicamente, na comédia os homens são próximos a animais (vejam-se as caracterizações de Fauno, de Sátiro, de Pã). A tragédia poucas vezes chama atenção para o corpo: o herói não senta, não come, não bebe, fica em pé praticamente o tempo todo em cena. Já na comédia há ênfase no corpo, no sexo, no apetite, nas anormalidades físicas e morais.

A estratégia de Angélica por enquanto é a do riso, da gargalhada, de incorporar com um fundo de iconoclastia os valores do opressor para o convidar não só ao riso, como ao ludibriamento. Se à priori o humor de Angélica vai de encontro ao primeiro momento modernista, não se pode negar que ela, como de resto o próprio primeiro momento, expande sua visão e se diferencia da "cartilha". Uma vez que, conforme notado por Domeneck, a poesia de Angélica se insere numa tradição satírica que remonta aos goliardos, me parece bastante óbvio que a poeta, numa atitude não só de self-depreciation, como também de flagelamento público, trabalha muito mais com marcas, efeitos, que com causas ou operações. Assim, por exemplo, o humor e o nonsense não são nem de longe um fim em si, mas um preparatório pro depois da festa.

É assim que Angélica se aproxima de Drummond, uma vez que o poeta mineiro não se rendeu aos momentos ufanistas do modernismo-parada-dura (Oswald, Mário, Bandeira). Pelo contrário, a ironia de Drummond chega até mesmo a se questionar se existem brasileiros no Brasil, tendo em vista que as relações drummondianas para com o espaço sempre se marcaram por um caráter abertamente universal. Tenho minhas dúvidas se algum dia a poesia de Angélica chegará a tal adoção plena, o que, não preciso nem dizer, não diminui nem creio que diminuirá o mérito de seus textos. Pois a esse respeito, cumpre notarmos que a adoção de um espaço universal no plano do poema, que em Drummond, mesmo se restrito ao terreno de Minas, encontra esta acepção (que alcançará seu ápice nas duas rosas de sua poesia, a do povo e a das trevas [Claro Enigma]), provavelmente não é uma urgência da poesia contemporânea, tendo em vista que o espaço, virtualizado, já é universal. Afirmar o indivíduo, e ter nesse indivíduo como que a barquinha para poder navegar nos mares cosmopolitas d'hoje, me parece ser uma atitude muito mais lúcida para com nosso tempo.

E de resto, é o que o percurso da obra drummondiana atesta, conforme estudado por Affonso Romano de Sant'Anna: ou seja, dum Eu maior que o Mundo prum Igual e prum Menor. Daí a forte tonalidade humorística e sarcástica que permeia o primeiro livro de Drummond e se abranda no segundo, movimento parecido com o dos dois primeiros livros de Angélica. Citando o estudo de Pirolla, é uma transposição de um humor leve e invasivo, de clown, repito, até o momento em que Drummond chega à ironia romântica e ao humor político, sério, até mesmo metafísico, para, por fim, se reconciliar à leveza casuística, autobiográfica e reconciliadora dos últimos livros.

Sobre a ironia romântica na poesia de Drummond, cumpre citarmos Pirolla, página 38,

A obra do poeta, desta forma, caminha entre a consciência alerta e a dramaticidade criadora, entre o clarão e a paixão, entre a inspiração e o raciocínio, em uma tensão, sonhada pela ironia romântica. Isso acontece porque Drummond adota uma arma defensiva contra uma perspectiva única da criação artística, pois ela, indiretamente, garante a liberdade do escritor. 
A ironia “romântica-moderna” é cética no tocante ao desvendar da própria arte e prega que somente através da consciência crítica do autor em relação à sua arte há liberdade criadora. Constrói, desta forma, uma espécie de obra aberta: ao localizar-se dentro do poema, o poeta assume uma postura irônica e a questiona enquanto estatuto de arte, posicionando-se com despreendimento e superioridade tratando-a como um brinquedo.

Uma página depois,

No ato de construir-destruir os próprios versos, o que se dá em toda obra do poeta de maneiras diferentes, parece desenhar o conceito de arte enquanto o eterno fazer e desfazer, criação e desmanche, pretensão da ironia romântica, que tinha neste movimento um símbolo da ciência dos limites do artista, algo imprescindível a sua liberdade e a superioridade frente ao seu ofício. No entanto, o questionamento de si próprio não pede a intrusão do eu de maneira clara. (...) 
Ao adotar a estratégia da ironia romântica, ele se apóia na reverência e na irreverência, contradição e condição que faz do artista apto a lidar com a sua arte, enfrentando os desafios da criação, sem neles aprisionar-se, preservando sua liberdade individual.

Até agora é comum notar o dedão dela, Angélica Freitas, no meio de seus poemas, o que será, conforme venho repetindo, francamente problematizado no próximo. Voltando ao poema que estamos proseando, podemos observar essa notória intromissão na segunda estrofe e o uso da expressão em inglês, de forte carga irônica. A imitação da conversa entre filha e mãe na quarta estrofe é outro exemplo, para além do trabalho literal e não-literal, literário e de deboche que Angélica desenvolve acerca da já citada expressão "sem plumas". Na verdade, quando nos adentramos nos poemas de Angélica, a impressão que temos é que uma hora ou outra eles vão fazer algum trocadalho qualquer pra nos fazer rir, como se existisse uma suspensão cômica. A impressão não é falsa pois, na prática, ela ocorre com qualquer coletânea de poemas cômicos: e pode ser muito bem vista no livro de estreia de Drummond, que é o livro que estamos usando pra traçar um paralelo com o de Angélica. E tanto um como outro aproveita para, no devido momento, atacar essa mesma expectativa e a forçar ao vexame, como se o poeta levasse a piada até as últimas consequência e nos demonstrasse o que em verdade existe por trás do nosso riso.

Como dizia, Angélica, na segunda e terceira estrofe, tira sarro da expressão "sem plumas", a qual, como vimos, é uma das mais reveladoras no poema. Ela começa a trabalhar essa ideia de modo literal, dando um certo nó na cabeça do leitor: o leitor não esperava que a autora fosse trabalhar a expressão justo assim. E isso, num livro de poemas cheio de escritores e referências metalinguísticas a todo instante aloprados, põe em relevo a tal da ironia romântica e tudo o que ela implica de evidência à pessoa que escreve. Além, é claro, de que trabalhar literalmente a expressão "sem plumas" parece aproximar a expressão do ejetor de teias do homem-aranha, prédios, aval das pombas e, em suma, voo, liberdade, com uma recriação do mito de Dédalo, o que aumenta consideravelmente o escopo de análise do poema: imagine-se se pensarmos a posição do artista não só num paralelo Drummond-Angélica, mas Joyce-Angélica! Na pós-modernidade, somos todos dédalos...

O poema fecha de modo surpreendente. A tonalidade humorística, em tudo o que ela implica de superioridade imposta e de corroimento, deságua nesse "um coração / sem planos" com uma amargura e uma crítica que via de regra permeiam a estrutura dos poemas de Angélica. Ou seja: depois de feito o gracejo, depois de jogados pra cima os malabares, é como se todos caíssem no chão e Angélica dissesse: "pois é; é isso aí; vocês ouviram bem". Nesse ofício ou arte taciturna, Angélica gradativamente vai deixando de lado o que não deixa de ser uma irresponsabilidade poética, mas que possui ainda assim resultados reveladores, para andar na corda-bamba e desentranhar no forçado e no forcado das construções, uma figura humana em cárcere. À guisa de, ao invés de jogarmos malabares, jogássemos facas só lâmina, o que, muito bem formula Cabral, implica corte e machucado. Não é simplesmente um arte pela arte. A faca corta dos dois lados. Você não tem o porto-seguro do cabo.

Angélica não quer deixar nenhum porto-seguro para o leitor. Não basta à poeta pedir algo impossível e fantasiar-se num mundo de super-heróis. O mundo dos super-heróis não é um mundo feminino. A única entrada da mulher nesse mundo é a partir do corpo, mas um corpo trancafiado na vitrine (aqui). Como uma pele que te habita... Ela não pode ter planos; não pode querer o êxtase, o orgasmo. O heroísmo. Deve sempre andar com plumas. Deve, para exemplificarmos com alguns processos de construção de Angélica em seu segundo livro, seguir sendo uma construção:

    A mulher é uma construção

    a mulher é uma construção
    deve ser

    a mulher basicamente é pra ser
    um conjunto habitacional
    tudo igual
    tudo rebocado
    só muda a cor

    particularmente sou uma mulher
    de tijolos à vista
    nas reuniões sociais tendo a ser
    a mais mal vestida

    digo que sou jornalista

    (a mulher é uma construção
    com buracos demais

    vaza

    a revista nova é o ministério
    dos assuntos cloacais
    perdão
    não se fala em merda na revista nova)

    você é mulher
    e se de repente acorda binária e azul
    e passa o dia ligando e desligando a luz?
    (você gosta de ser brasileira?
    de se chamar virginia woolf?)

    a mulher é uma construção
    maquiagem é camuflagem

    toda mulher tem um amigo gay
    como é bom ter amigos

    todos os amigos tem um amigo gay
    que tem uma mulher
    que o chama de fred astaire

    neste ponto, já é tarde
    as psicólogas do café freud
    se olham e sorriem

    nada vai mudar -

    nada nunca vai mudar -

    a mulher é uma construção

É nítido que sua corrosividade e sua ironia estão em primeiro plano, e o que antes era entretenimento regrado a piscadelas, desmantela. É como o Drummond que, se num poema havia parado só pra dizer que é preciso falar sobre a Bahia, mas que nunca foi à Bahia, se entrega ao Sentimento de Mundo e tenta abarcar tudo com apenas duas mãos. As mesmas que depois ele tentará cortar. As mesmas que, para Angélica, se diferenciando um pouco do escopo de análise do autor mineiro mas com estruturas parecidas, conforme tenho mostrado, se comparariam ou às mãos da Jeanne Marie rimbauldiana (aqui) ou ao desejo de poder andar entre os homens sem o espalhafato de edifícios que outros constroem dentro dela e aos quais ela não pode ascender. Uma espécie de gauche na carne, sem necessidade de um anjo torto, ou, havendo a necessidade de um, que seja um à maneira de Adélia Prado (aqui). Pois, de resto, Angélica já se lamentava:

    Ai que bom seria ter um bigodinho
    além das lentes dos óculos ficar
    escondida por trás de uma taturana
    capilar

    um bigodinho para poder estar

    um bigodinho para sair à rua e ver
    o mundo mas se esconder

    (...)

Aqui o recurso da rima, tido como insuficiente desde Drummond, vai de encontro ao impacto e ao não-corriqueiro que comumente a poesia cômica se vale para obter o inesperado. Algo que, aliás, Angélica transformará num ótimo epigrama em seu segundo livro: "diz-me com quem te dietas / angélica freitas". Citando Domeneck, poucas vezes em nossa poesia a rima foi usada com tanta graça e inteligência. E tais surpresas podem ser apontadas no livro todo, seja na imersão de objetos prosaicos que vão tecendo uma coroa de lixo ao redor do poema, como em "agosto a oitava coelhinha da playboy / ou o templo dourado de kinkakuji / ou um gato e um pato num cesto", onde a pornografia e o nonsense anulam mesmo um templo dourado, ou o poema família vende tudo, a situação do poema love me...

O acesso às banalidades, e poder contar com elas na hora de gozar (n)a vida, é uma reivindicação da poesia de Angélica. O ejetor de teias é um exemplo claro. A "dentadura perfeita" do primeiro poema do livro é outro, que consegue rebaixar até mesmo Shakespeare graças ao fato de que, com ela, a poeta poderá "come tudo o que puderes, / e esquece este papo, / e me enfia os talheres." Não há como não se lembrar do Drummond de "Mariquita, dá cá o pito, / no teu pito está o infinito."

O poema que a meu ver melhor demonstra o fato de que a reivindicação do banal é coisa séria, é o poema autofocus, citado integralmente:

    o remordimento é algo
    muito difícil
    você me disse
    mordendo
    o próprio rabo

    eu te compreendi
    enquanto você dava voltas
    e baixei o volume do rádio

    era um scherzo
    sei lá
    um allegro andante
    não era boa
    a trilha sonora

    enquanto me ocupava
    dessas tralhas
    você já tinha se engolido
    pela metade

    o remordi é tal
    mui di

    eu chamei a ambulância

O final surpreendente, o trato sarcástico de si mesma... Tudo já vimos. Para manter o que estive comentando acerca do prosaico, das sucatas de nossa vida, bastaria citar que o rádio poderia estar tocando qualquer coisa, de Beethoven a Calcinha Petra: isso tudo é tralha. Nós transformamos tudo em tralha. Uma dentadura, as obras de Shakespeare, o aceitamento, o outro, nós mesmos... Não se pode dizer que Angélica brande um chocalho de palavras sem eira nem beira porque traz tantas coisas cotidianas ao plano do poema. É uma atitude crítica poderosíssima. E que deve ser encarada com a devida atenção.

§

Antes do fim, um pequeno comentário. Existem alguns leitores de literatura contemporânea que tiram a lupinha do bolso e saem à cata do novo Drummond, do novo Guimarães Rosa.

Há um erro bem grosseiro aí.

O primeiro é o simples fato de que comparar uma Obra Completa com um work in progress, que é a condição de todo artista contemporâneo, é algo que deve ser feito com toda a parcimônia do mundo. O mesmo posso dizer de se comparar um artista que teve a chance de reunir em torno de si um rosário de críticos com um artista que ainda não teve esse tempo. Ou o leitor veste a carapuça e faz uma leitura com os pés no chão, ou fica fazendo papel de besta.

Se comparei Angélica com Drummond, estou sendo precipitado ao querer implicar com isso que Angélica é o novo Drummond de nossas letras? Entendo a posição central que Drummond ocupa em nosso cânone, o coração de nossa poesia, e admiro incondicionavelmente sua obra. Contudo, não posso deixar de buscar olhar para meu tempo e a produção de meu tempo de maneira mais consistente. Angélica só publicou dois livros. Creio sim que ela só tende a crescer enquanto poeta e que sua obra merece sim ser analisada.

Claro que daqui há 50 anos isso pode virar farinha... Não deixa de ser uma possibilidade e um fantasma que assombra o leitor de literatura contemporânea. Mas isso não retira o encargo de se fazer apostas, que nem apostas são. Na prática, o que os leitores de daqui a 50 anos lerão será o que nós, hoje, coroaremos como positivo. Repito: quem daqui há 50 anos vai devassar a terceira gaveta do poeta que se trancou no armário? A crítica de amanhã reconhecerá os poetas que nosso tempo laurearão, o que não implica que alguns não possam se perder ao longo do caminho nem que nós não possamos coroar idiotas. Observando, porém, de forma mais ampla, me parece muito difícil que o contato entre um bom poeta e um bom leitor resulte em engano. Se esse leitor for um leitor amplo de poesia de modo geral, e um bom leitor de seu tempo, das exigências e reivindicações deste, ele poderá entender lucidamente como um bom poeta luta contra aquele tempo.

Re-pito: comparar um poeta com Obra suficientemente desenvolvida, em estado de Antologia Poética, com um recém-ingresso, é algo extremamente perigoso. Você se deixa ofuscar pela plêiade de bons poemas que uma Obra Completa apresenta e os põe em contraposição aos resultados, muitas vezes igualmente bons (mas, óbvio, em menor quantidade), do poeta estreante. E aí é um show de horrores. Pois você também não tem a lucidez de enxergar na Obra desse poeta já desenvolvido poemas igualmente ruins, nem enxerga também qual o verdadeiro estágio em que ele se encontrava quando também era um estreante, e de que modo a poesia que ele apresentou conseguia fornecer equações necessárias e funcionalmente poéticas para seu tempo. Para não dizer no fato de que poemas ruins dentro de um livro de poesia é a condição de todo e qualquer livro de poesia, dOs Cantos à Divina Comédia. Oras: vai dizer que você coloca no mesmo pé de igualdade o Canto I do Inferno com o Canto II? E por aí vai... Isso sem contar que, quando um poeta tem tempo para desenvolver uma Obra, ele pode alçar aqueles poemas menores à posição de estrategicamente importantes. E que só um idiota qualifica um poeta por seus piores momentos.

A leitura comparada é uma ponte fortíssima e de grande consistência para que possamos analisar literatura contemporânea, coisa de uma urgência incalculável. Não basta nos escondermos atrás do cânone sob a desculpa de que não temos o distanciamento crítico necessário. Primeiro pois um bom leitor possui sim um distanciamento nem um pouco desprezível, e segundo que, se não possuímos o distanciamento adequado, melhor dizendo, ideal, possuímos o ardor. E esse ardor muitas vezes é o que o crítico depois não tem!...

Não se enganem: isso é muito, e, a partir dele, é o suficiente.